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Versão da Catarina
A ancoragem na Ilha do Campinho é mais selvagem, sem agito de cidade por perto. Em terra, formam-se pequenas praias para banho, que aparecem durante a maré baixa, com algumas faixas ocupadas por propriedades particulares. A correnteza no canal é tão forte que, muitas vezes, vence o vento, e o barco fica de lado para ele, o que prejudica a ventilação. Lá, ressuscitamos as telas mosqueteiras, para evitar a entrada das moscas durante o dia, e de pernilongos e muriçocas à tardinha, mas nada fora de controle, justificável pelo calor, e pela natureza à volta.
Ilha têm muitos restaurantes em suas margens, todos praticando o mesmo preço alto, por conta do verão. É a estação em que o pessoal ganha dinheiro, para sobreviver o resto do ano. O lugarejo é bem simples, com pequenas casas de alvenaria, sem calçadas; só mais para o lado que dá para Barra Grande é que se vêem casas maiores, assobradadas, de veraneio.
As casas mais rústicas ficam com portas e janelas abertas durante o dia, sendo possível ver quadros de São Jorge pendurados na parede, lutando com o dragão branco, na Lua; há, inclusive, uma igrejinha em sua homenagem. A devoção ao santo talvez se explique por ele representar um guerreiro, batalhador, como tantos brasileiros. Já a Lua, onde ele habitaria, foi introduzida, dizem, pelos baianos, e faz sentido para o local, pois se o santo domina o astro, também cuida das marés, que regem toda a vida por aqui, e a nossa vida.
Após alguns dias ancorados na Ilha de Campinho, fomos até a cidade de Camamu, para abastecer o barco com perecíveis, no dia de feira na cidade, que é no sábado. Pegamos um barco que passa às 6:00 horas da manhã, e retorna para a Ilha por volta das 12:30 horas. No barco, muitos estão com cara de sono, algumas crianças até dormindo, cobertas por mantas. O trajeto levou cerca de uma hora e meia, foi mais longo por conta da maré baixa de sizígia, que obrigou o barqueiro a dar uma longa volta, para não encalhar. Sentei do lado de uma moça com uma criança, uma menina, que quando acordou desatou a desarrumar o cabelo de sua boneca, para que eu refizesse as tranças; ela mesma, só prendia a trança feita, tentava, mas não conseguia emaranhar as mechas separadas. Coisa para o futuro. No meio do trajeto, o barco teve que rebocar um outro, com problemas no motor, e levar seus passageiros; aí fiquei do lado de uma moça com uma criança de colo, que dizia sentir frio quando o vento batia, mas já estava calor, fazia, seguramente, uns 30º C!
A cidade nesse dia é o que se poderia chamar de uma verdadeira bagunça, com algum sentido: muitos barcos no pequeno porto, diversos ambulantes, vários carros de som com propaganda em alto volume, todos ao mesmo tempo, nenhum telefone público funcionando e, para nosso azar, faltou energia, ficamos sem serviços de banco nos terminais. Na feira local são vendidos os produtos produzidos na região: banana, jaca, abóbora, aipim, e alguma verdura; não queira encontrar maçã, e se encontrar, vai estar ruim. Fiquei com receio de trazer carne, por conta do tempo de trajeto, e do calor, ou seja, os dias subseqüentes no barco foram de variação de receitas com ovos, sardinha, e proteína texturizada de soja, essa com algum paio, para disfarçar. Para meu azar, o charque que eu comprei em Salvador estava estragado.
No volta de Camamu, o barco saiu carregado de coisas que o pessoal comprou, tinha até televisão, filtro de água de cerâmica e madeiras para construção. Dessa vez, sentei do lado de um menino, que ficou de castigo porque mexia na roda de leme do barco, na ausência do capitão, que não gostou nada quando viu. Que menino inteligente! Sabia tudo sobre os barcos, local para abastecer combustível, qual era mais rápido, e qual o motivo para isso, a população das cidades todas da região, inclusive, das capitais do país. Estava indo passar as férias escolares na casa da avó. Depois de muito falar, desapareceu por uns instantes e surgiu com um carrinho vermelho, à pilha, e com controle remoto. Falei: “uma Ferrari, italiana!”. Ele respondeu: “não, é feito na China”, mostrando o decalque. Então, ele foi me mostrar o funcionamento do carrinho, a vantagem das rodas, de sua intenção de pintar a frente, machucada pelas batidas nas quinas, enfim, os papos de meninos, que eu só ficava escutando. Esse vai ter um barquinho, um dia!
Meu novo desafio é sobreviver com pouca água, por conta das limitações para obtê-la na Ilha, que não tem tratamento de água; quem tem poço para obtê-la cobra caro, para os padrões médios de preço de marinas. De minha parte, sempre fica a dúvida se o poço de água está a uma distância segura de fossas, e se a água foi testada e tratada. Concluímos que a água da chuva é a alternativa mais segura, e barata.
Durante o dia, no Campinho, sentíamos mais o movimento gerado pelo tráfego de embarcações, ao longo do canal, algumas em alta velocidade, e isso nos deu vontade de ir para um cantinho mais recolhido. Estava logo ali, no Canal da Ilha de Goió. Essa ancoragem é dez! Quietinha, com uma prainha só para nós, na maior parte do tempo, com direito a peixinhos curiosos. No fim de tarde, víamos papagaios e maritacas cruzando o canal, com vegetação de mangue nas margens, tudo muito lindo!
Como nossa intenção era conhecer a Cachoeira de Veneza, em Tremembé, então seguimos adiante, para subir o Rio Maraú, e chegar até a cidade de mesmo nome. A região não tem levantamento batimétrico pela Marinha, então, nossa atenção foi redobrada.
A vantagem de Maraú, para abastecer o barco, é que podemos fundear logo ali em frente, e é mais fácil trazer perecíveis, sem correr o risco de estragarem. A desvantagem é o barulho de música na cidade, até de madrugada, principalmente às sextas-feiras, vésperas da feira local.
Local de contrastes: à noite, rezam novenas na Igreja de São Sebastião, com auto-falantes ligados, depois, os auto-falantes tocam música profana, com forte apelo sexual. Isso no carnaval deve ser uma loucura! Nós preferimos a ancoragem selvagem, e seguimos para Tremembé, para conhecer a Cachoeira de Veneza.
O trajeto para Tremembé é completamente preservado, sem construções, só mangue e mata. O tempo todo, sentimos um cheiro bom de mato. No dia em que chegamos, não deu para ir até a Cachoeira, porque armou um tempo feio. Bom para recolher água! O banho de cachoeira fica para a próxima.
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Versão do Dorival
A Baia de Camamu, terceira maior do Brasil (todo mundo cita isso), ainda é bastante preservada. Enquanto estávamos ancorados no Campinho, tomamos um barco local de transporte para ir até Camamu, fazer feira e conhecer a cidade. A rota é rasa demais para o Luthier, e na chegada tem muitas pedras que obrigam os barcos a fazer vários zigue-zagues, para se safar delas.
A cidade tem calçadas muito estreitas que, devido ao trânsito de pedestres, nos obriga andar na rua, no meio dos carros e motos. Seguindo o costume das cidades do interior, há a famosa rádio poste, com seus potentes alto-falantes, disputando nossos ouvidos com os não menos potentes sistemas de som instalados em carros e motos, que ficam anunciando o comércio local, horário de missas, apoio da prefeitura, vereadores, etc. A feira ocupa dois galpões e duas áreas fechadas, uma para farinhas e outra para carnes. O ambiente não é muito limpo, e frutas em bom estado se misturam com outras já apodrecendo. Chovia, e, talvez por isso, a minha impressão não foi das melhores.
Quando voltamos da cidade de Camamu, mudamos de ancoragem para um canal que fica entre a Ilha do Goió e a Ilha do Campinho. É muito abrigado de ventos e a correnteza, devido às marés, é bem menor. Havia alguns veleiros e muitos barcos com turistas apareciam, mas o sossego não foi interrompido. Escolhemos uma pequena praia na ponta sul da Ilha do Goió como nossa preferida. Fomos lá todos os dias. Nessa ancoragem, não há sinal de TV e Internet. Água doce de boa qualidade não é fácil de encontrar. A água usada na ilha vem de poços e, em geral, não é tratada. Para beber, usamos água mineral, que pode ser comprada em Camamu ou Maraú.
Como alternativa, comecei a fazer experiências de coleta de água de chuva para ser usada nos banhos, higiene e lavar louças. Inicialmente, levantei as abas laterais da cobertura que vai desde o bimine até a escota da mestra, que fica no meio da retranca. Essa cobertura tem 6 metros quadrados de área. As abas levantadas formaram uma espécie de calha. Coloquei baldes na parte mais baixa e consegui colher 60 litros de água em três ocorrências de chuva forte. O problema desse sistema é que, com o vento, parte da água cai fora do balde.
Do canal da Ilha do Goió, saímos em direção a Maraú, que fica em um rio do mesmo nome. Ancoramos em frente a um pequeno píer flutuante que está precisando de reparos. A cidade é muito mais limpa. As praças, guias e gradis estão sendo pintados para uma festa de verão que começa dia 17 de janeiro. Toda sexta e sábado tem uma feira muito interessante. As frutas e legumes têm a mesma aparência das de Camamu. Há muitas barracas vendendo utensílios domésticos, roupas e calçados.
Em Maraú, a rádio poste é ensurdecedora, e a ela soma-se o som dos feirantes, que vendem todo tipo de pirataria musical e dvd. Esse sistema de som é administrado pela Paróquia. Ás 18:00 hs, eles transmitem um tipo de “Ave Maria” e depois iniciam uma novena. A novena é uma oração feita no estilo capela (música só cantada, sem instrumentos musicais), em uníssono, sem acordes, um tipo de canto gregoriano que não é temperado nem pitagórico, muito desafinado. Do barco a coisa fica terrível. O efeito da propagação do som em tempos diferentes, devido às diferentes distâncias até as caixas de som, não permite, apesar do volume muito alto, entender o que está sendo dito, transformando o cantado desafinado em tortura medieval. Depois da novena, a mistura de sons segue com músicas de todos os tipos e gostos, a noite toda.
Compramos frutas, carne, alguns legumes e água mineral. Com o detalhe de ter que esperar o comércio reabrir às 14:00 hs, porque tudo fecha para o almoço.
Logo seguimos rio acima, até um ponto de ancoragem perto de Tremembé, onde está a Cachoeira de Veneza.
Para melhorar a coleta de água da chuva, resolvi montar duas calhas com canos de PVC, uma para bombordo e outra para boreste. Usar uma calha para coletar água não é novidade, o difícil foi fazer a borda da lona ficar dentro da calha quando venta. A solução foi fazer com que a borda superior ficasse fixa no fundo da calha, e a borda inferior próxima à borda exterior da calha. Esticar bem, mas deixar que o conjunto se mova um pouco com o vento, mantendo a borda do pano na calha.
A coisa toda é um protótipo, mais parece uma trapizonga desajeitada que uma calha, mas, na verdade, é uma trapizonga mesmo. Mais um treco para guardar que tem a vantagem de estar coletando muita água. O Luthier tem a capacidade de armazenar 475 litros de água distribuídos em três tanques, mais 25 litros em um boiler. Treze dias depois de abastecer em Salvador, estamos com 300 litros de água nos tanques. Já coletei uns 150 litros de água da chuva. No balanço, estamos consumindo 27 litros de água doce por dia.
A ancoragem próxima à Cachoeira de Veneza é muito tranqüila, não há som alto, estamos sós e, mesmo com muito vento, o barco fica quieto. Aqui posso descansar depois de duas noites mal dormidas. Chega, estou reclamando muito para meu estilo, fica chato. Maraú tem seus encantos.