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Versão da Catarina
Qual é o cúmulo da sacanagem para o comandante de uma embarcação em trânsito? A tripulante na TPM, desatenta, esquecida, pronta para iniciar um motim. E qual o máximo da sacanagem para a tripulante? Não poder mergulhar em Fernando de Noronha, para não atrair tubarão.
Não há registros de ataques de tubarão em Fernando de Noronha, mas ninguém quer ser o primeiro da estatística. Quem viu a festa dos tubarões no Porto da Ilha, no cair da tarde, quando se jogam vísceras restantes de uma peixaria local, não pensa em correr o risco; muitos questionam o que pode acontecer quando esse serviço falhar, por qualquer motivo.
Quando estávamos em Recife, no feriado de 7 de setembro, a imprensa noticiou que um estudante foi levado pela correnteza na Praia de Piedade, em Jaboatão de Guararapes, sendo encontrado morto, com partes das nádegas e coxas laceradas por mordidas de tubarão. A causa da morte não foi afogamento, mas a hemorragia causada pelas mordidas. Poucos dias depois, outro caso. As motivações dos ataques, que vem se intensificando desde a década de 90, podem ser várias, desde a poluição, à destruição dos manguezais, e muitos especialistas arriscam ser a construção do Porto de Suape.
Depois de uma viagem puxada, nada melhor que andar, e não falta morro e trilha na Ilha, para subir e descer. Nos aconselharam a usar camisa de manga comprida, chapéu e óculos escuros, porque o sol é de lascar; venta demais, o que compensa o calor do vestuário. Levamos água para beber, porque o clima é árido, e nem sempre há uma barraquinha por perto.
Pegávamos trilha comendo poeira. Aonde foi parar a mata tropical da Ilha? Onde estão as sombras das árvores? Dizem que elas existiam, e que houve uma devastação por conta do presídio que lá funcionou por anos, por medida de segurança, e hoje os ambientalistas não se entendem quanto ao seu reflorestamento; restam graminha seca e arbusto baixo. Ainda assim, sem mata, o lugar é esplendoroso, com praias de areia fina, água transparente, muita vida marinha, e muitos pássaros. Queria mais tempo para conhecer tudo.
No dia da premiação da Refeno fomos conhecer a praia do Sancho, de bugue, e deu para arriscar nadar de snorkel numas piscinas isoladas que se formam. Muitos peixinhos curiosos vem ver o que está acontecendo, e bicar a ponta dos nossos dedos das mãos. Depois, fomos almoçar na Praia da Cacimba, com amigos. Estava apertada para ir ao banheiro, mas informaram no restaurante que só tinha o natural, nuns matinhos lá trás, o que para mulher é mais complicado; teria que descer a ladeira e ir fazer no mar. Nesse mesmo restaurante passou correndo, por entre as mesas, um rato, que foi formidavelmente morto por uma das irmãs gêmeas, que serviam no local, com um coco verde. Olé!! Parece que eles são praga na Ilha.
E como não se vê o tempo passar, já era hora de voltar e tomar banho para a premiação da Regata. O traje social teve que ser um molha-bunda-seca-rápido, de tactel, porque no Porto, onde ancoramos, tem muito swell, e você vai se molhando logo no trajeto. Também não dá para colocar salto alto, porque o desembarque é na areia. Ah, pena que não deu certo comprar um bote com quilha, está fazendo uma super falta no Nordeste.
Pela primeira vez na minha vida, subi num pódio. Fiquei com medo de escorregar de lado. Mas deu tudo certo, muitos aplausos, cumprimentos mútuos. Ficamos muito satisfeitos que nossos amigos, do trimarã da Paraíba, pegaram o primeiro lugar na classe multicasco d: merecido para uma viagem puxada, tomando banho de água salgada, o tempo todo.
O excessivo balanço do mar na ancoragem dificulta um pouco o sono. A compensação são os golfinhos rotadores ao amanhecer, em volta do barco, e as tartarugas.
São tão poucos os dias autorizados para permanecermos na Ilha que, já no segundo, estávamos planejando a volta. Na véspera, a parte mais difícil da viagem: a despedida de amigos que não sabemos quando vamos encontrar de novo. Temos que nos acostumar com isso, mas não é fácil, principalmente de alguns estrangeiros, que sabe-se lá quando veremos. A amizade, e a afinidade, são sentimentos da alma, transcendem os desencontros eventuais da língua; certo é que, tais amigos vão ser guardados no coração.
Resolvemos ir até Natal, pela oportunidade, e porque não conhecíamos a cidade. Saímos no sábado, dia 26 de setembro, às 8 horas da manhã, horário de Brasília, juntamente com uma flotilha. Dessa vez, o combinado era navegar na boa. Saímos já no primeiro rizo da vela mestra. O mar estava chato, com muitas ondas de lado, que foram piorando à medida que nos aproximávamos de Natal. Tomamos muitos banhos de água salgada, de ondas que lavavam o convés. No nordeste, esse foi o pior mar que pegamos; em compensação, teve bastante vento, o tempo todo, tanto que viemos com a genoa rizada.
Na chegada a Natal, ouvimos pelo VHF o pedido de resgate de nossos amigos do trimarã da Paraíba. Fomos informados pela Marinha que um rebocador já estava a caminho para resgatá-los. Ficamos muito apreensivos, e só pudemos ter notícia de que tinham sido resgatados no outro dia, pela manhã. Pelo que soubemos, o barco capotou, e eles ficaram aguardando resgate por dez horas, naquele mar batido. Por fim, estão bem, nasceram de novo. Então, vida longa aos bravos, digo, aos reis!
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Versão do Dorival
A água em Fernando de Noronha é tão limpa que, com profundidade de 10 metros, pude, com calma, escolher onde baixar o ferro, evitando as pedras. Coloquei uma bóia de arrinque com 8 metros de cabo, de tal forma que ela ficasse submersa, imaginando que poderia me ajudar a soltar o ferro, caso ficasse preso nas pedras do fundo.
Dormi apenas 4 horas, mas depois dessa, mais a adrenalina da chegada, não consegui mais pegar no sono. Fomos para terra.
Já havia festa na Ilha, bandeiras dos patrocinadores, água, refrigerante e frutas à vontade para os participantes. Revimos os amigos que fizemos no Cabanga e, depois de muita conversa sobre as estratégias adotadas, fomos passear. Logo soubemos que fomos o 32º barco a chegar na Ilha. À tarde, saiu a primeira publicação, ainda preliminar, da classificação e vimos que estávamos em primeiro na classe aberta B, e que os nossos amigos do trimarã da Paraíba também foram primeiro na classe multicasco D. Fizeram uma tremenda festa para nós, compraram alguns peixes com os pescadores locais e, em uma casinha próxima ao Museu dos Tubarões, comemos peixe assado e cru, à moda japonesa.
No dia seguinte, fomos a diferentes praias passear. Encontramos muita gente, a Ilha estava cheia de velejadores.
À noite, a festa da premiação, muita gente, fotos, etc..
A ancoragem em Fernando de Noronha é muito mexida, eu acordava o tempo todo achando que estava navegando. De repente, na manhã seguinte à premiação, tudo acabou, as bandeiras já haviam sido recolhidas e muitos barcos já estavam se ajeitando para sair. Muitas despedidas.
Nesse dia, o skipper do trimarã grandão veio até o Luthier, não falamos muito, estava claro que a despedida era difícil, para mim e para ele. Tanto em Salvador como na Refeno sempre estávamos juntos, trocando idéias e ajudando um ao outro, e a outros navegantes que cruzaram nosso caminho, foram meses de convívio. O adeus foi um abraço rápido, e ele saiu com o bote em alta velocidade sem olhar para trás, também entrei no barco para não ver.
Fui até o trimarã da Paraíba para ajudá-los a resolver uma pane elétrica, falamos muito sobre a regata e combinamos nos encontrar em Cabedelo, um porto próximo à João Pessoa. Um deles me contou que, durante a viagem, ficaram imaginando que eu e a Catarina estávamos comendo iguarias em pratos de louça, enquanto eles estavam no pequeno trimarã comendo sanduíche frio, até que houve a conversa pelo rádio e eles viram que estávamos competindo mesmo, indo para o outro lado da ilha, comendo bolacha salgada, nada de iguarias.
Dia 26 de setembro saímos junto com outros 15 barcos para Natal. Quando fui suspender o ferro, notei que ele estava em baixo de um outro veleiro da Alemanha. Aproveitei um momento de mudança na direção do vento que tirou o veleiro de cima da âncora e comecei a recolher a corrente, com a Catarina levando o Luthier a vante, lentamente, no motor. Nossa âncora acabou por “pescar” a corrente do veleiro alemão. Com o croque, peguei a bóia de arrinque e, soltando peso da corrente no braço da âncora pude, puxando o cabo, soltar facilmente a corrente do veleiro alemão. Enfim, a bóia me ajudou de outra forma, porque o ferro não ficou preso ao fundo, mas vi um veleiro que ficou uma hora para frente e para trás, para soltar a âncora.
O trimarã da Paraíba também saiu nesse dia, mas seguiu para Cabedelo.
A viagem até Natal foi boa, velejamos tranquilos, em regata, mas sem competir. A chegada foi mais chata, o mar estava ruim, e o vento entre 20 e 25 nós. Assim que chegamos, ouvimos pelo VHF, canal 16, Natal Rádio, o aviso do pedido de socorro do trimarã da Paraíba. Nossos amigos capotaram a 20 milhas de Cabedelo, estavam à deriva, em cima do trimarã emborcado. Entrei em contato com o Rebocador de Alto Mar Triunfo, da Marinha do Brasil que, pelo SSB, me informou que estavam indo fazer o resgate deles. Outros dois Navios Patrulha, o Graúna e o Guaíba, também foram. Foram resgatados perto da meia noite, mais ou menos 10 horas depois do capotamento.
O sucesso desse resgate se deve a duas coisas: o preparo, e a inteligência estratégica do Comandante do Triunfo, e aqueles “dispositivos automáticos de iluminação” que a marinha exige que os veleiros engajados na Refeno tenham nos coletes. Além disso, os tripulantes estavam bem equipados, e têm bastante experiência de mar.
Em uma festa no Clube aqui de Natal, o Capitão do Triunfo me contou como foi o resgate. Assim que eu falar com os tripulantes, conto essa história. Eles estão bem, descansando.