Medo? Não. Mas perdi a vontade de ter coragem
João Guimarães Rosa
O mar que nos fascina e atrai ora calmo ora furioso, nunca é monótono, não se repete e nem se importa se você está eufórico ou deprimido, bem ou mal sucedido, até vivo ou morto.
Parado agora numa marina em Salvador revejo os últimos 19 dias que estive envolvido na travessia desde Angra dos Reis. Na verdade, a viagem começou bem antes, nos detalhes da preparação do barco. Procuro manter o Yahgan sempre pronto para partir e com todos os seus sistemas funcionando satisfatoriamente. Mas nunca se sabe. A responsabilidade de conduzir o barco em solitário é muito grande porque qualquer pequeno problema pode se transformar numa enorme dor de cabeça. E estou sempre inseguro achando que esqueci-me de verificar alguma coisa.
A previsão de tempo consultada na Buoyweather, LAMMA e CPTEC teve um acerto estimado em 90%. A intensidade e direção do vento foi muito acertada. Para o mar, tive ondas maiores do que o previsto entre Cabo Frio e Cabo de São Tomé e entre Belmonte e Ilhéus. Utilizei pouco a Meteoromarinha com seu prognóstico somente para um dia e para áreas de mais de 300 milhas. Tive um comportamento bem conservador em relação a saída dos portos. Em Vitória fiquei assistindo ao vento sul soprar por vários dias. Como havia uma previsão de mar agitado até Salvador decidi não sair. Depois entrou o NE e tive novamente que continuar a esperar. Finalmente com a entrada de uma nova frente fria pude navegar tranquilamente. Depois, com o aparecimento de um mar desencontrado não previsto, entrei em Ilhéus para me abrigar. O saldo das 125 horas de navegação foi uma viagem segura, rápida, toda com vento e mar a favor sendo que durante aproximadamente 24 horas tive que lidar com ondas desencontradas de popa que trouxeram muito desconforto, apreensão e alguma angústia.
No trecho Angra >> Vitória andei todo o tempo com a vela grande no primeiro rizo. Foi satisfatório para a maior parte do tempo. Ao sair de Vitória já coloquei a grande no segundo rizo. Para o navegador em solitário, é melhor manusear a genoa com enrolador mantendo a vela grande rizada e não sair da segurança do cockpit. Fiquei bastante satisfeito com essa arrumação apesar de, em alguns momentos, ter uma vontade enorme de abrir toda a grande e aumentar a velocidade. Usei bastante o motor nos trechos que enfrentei o mar desencontrado. Colocado em meia marcha, ele ajudou muito o leme a manter o rumo do barco.
Tive dois problemas de manutenção nessa viagem. Uma mangueira de alimentação de água salgada do motor que havia sido trocada recentemente ficou numa posição ruim e foi estrangulando com o passar dos dias. Tive que fazer uma emenda de emergência no pior trecho de mar agitado. Um dos tanques de água doce vazou por cima com o balanço excessivo. Pra complicar, a bomba de porão manual quebrou um flange e ficou inoperativa. Tive que conviver com alguma água chacoalhando no porão porque a bomba elétrica somente funciona adequadamente acima de um certo nível de inundação. Tive ainda alguma desarrumação em armários que estavam ótimos para a longa estada na marina Bracuhy mas inadequados para uma travessia em mar aberto.
A alimentação, como sempre, deixou um pouco a desejar por pura preguiça. Comi basicamente macarrão e arroz integral com lentilha e linguiça nas travessias. Uma boa descoberta foi um sandwiche tipo hamburguer pronto e congelado da Sadia que esquentado no microondas fica pronto em 1 minuto. Tem de vários sabores e acompanhado de batatas chips deixa eufórico qualquer navegador deprimido. E teve ainda, naturalmente, o armário das guloseimas que era atacado sempre que o nível de serotonina abaixava.
O suprimento de energia foi bem razoável. Tive bastante sol nas travessias e vento também. Os painéis solares e o gerador eólico conseguiram suprir aproximadamente 70% das necessidades. O restante ficou com o alternador do motor. Usei bastante o radar mas não o mantive ligado o tempo todo. O piloto automático, a geladeira e as luzes de navegação são os maiores gastadores numa travessia mas indispensáveis ao conforto e segurança.
As viagens num barco a vela nunca são iguais. Ao final de cada uma delas re-afirmo a minha convicção de que as piores situações são enfrentadas quando se estabelece datas para partir e chegar. E não acho que seja necessário passar por situações de desconforto e até de perigo para aumentar ou melhorar o meu conhecimento náutico.