Flotilha de 40 veleiros de oceano, organizada pelo
Iate Clube do Rio de Janeiro (clicar em
Cruzeiros), que se deslocará do Rio para participar da regata Recife - Fernando
de Noronha de 2004.
Crônicas do Cruzeiro:
Crônica da Partida
Etapa Salvador-Recife
A Ilha
Fotos da largada no Rio de Janeiro em 31/07/2004
+ Fotos (passar o mouse em cima para ver a legenda)
Crônica da Partida (31/07/2004)
"O dia de partir não é o dia de se preparar
para partir" - Ditado popular Nigeriano
Estamos prontos (ou deveríamos?!) para partir
para o nosso Cruzeiro Costa Leste? E o que cada um de nós espera desta
experiência? Simples lazer, ganhar confiança na navegação do seu barco, conhecer
lugares diferentes e distantes ou inacessíveis por terra; dar uma pausa nos
compromissos rotineiros, nas filas de banco, nos problemas domésticos, no
contato com os psicopatas corporativos; sentir o vento no rosto, a esteira na
popa e a vida sendo governada pelos verdadeiros elementos da nossa realidade: o
vento, o mar, as nuvens, o sol, a lua? Certamente você se identificou com algum
desses objetivos. Mas a lista é interminável.
Neste momento de partida, lembre-se da
finalidade de sua jornada. De agora em diante, não há mais qualquer coisa como
um ato neutro, um pensamento vazio, um dia sem sentido. Torne a sua viagem
sagrada através da profundidade da sua experiência, das suas contemplações.
Agora é a hora de viver a sua vida ideal.
Aproveite o simples. Somente podemos, de fato,
descobrir a beleza das coisas simples por meio de profunda observação, pela
lenta justaposição dos detalhes e das sutilezas. Experimente ver a sua nova
viagem como algo mais do que um itinerário turístico, como uma peregrinação,
algo somente possível porque vamos devagar, porque vamos à vela.
Nos próximos meses estaremos imergindo em um
novo tipo de estresse: um do tipo bom, que nos entusiasma, que aumenta a nossa
capacidade de raciocínio, de discernimento, que nos torna mais flexíveis, mais
humildes, que estimula o desenvolvimento do nosso bom senso, das nossas
habilidades secretas. Um estresse do bem.
Estaremos divididos pelo eterno dilema do
navegador: quando está no mar só pensa em chegar; quando chega em terra fica
louco para voltar para o mar.
Termino esta crônica com um trecho de uma
poesia de Fernando Pessoa, o mais náutico dos poetas:
"Chamam por mim as águas"
"Chamam por mim os mares"
"Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar"
"Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles"
João Carlos a bordo do Veleiro AYA
Etapa Salvador - Recife (10/09/2004)
Com as tripulações visivelmente mais pesadas, depois de sucumbir aos
acarajés, moquecas e cocadas, os veleiros participantes do Cruzeiro Costa Leste
partiram de Salvador no dia 10 de setembro com uma previsão de vento ameno de
ESE para todo o percurso de 380 milhas.
Alguns barcos planejaram parar em Maceió e adjacências (Barra de São Miguel)
enquanto outros decidiram seguir direto para Recife.
A saída dessa etapa foi estrategicamente programada para coincidir com um evento
tradicional organizado pelo Centro Náutico da Bahia, o Rally Salvador-Recife.
Pudemos engrossar a flotilha dos veleiros de Salvador que também se dirigiam
para a Refeno. Aliás, o ponto alto da estada em Salvador foi a hospitalidade do
pessoal do Centro Náutico, o que tornou a partida mais saudosa.
Como o forte do velejador não é o planejamento, no dia da partida ainda se viam
velas sendo montadas as pressas, motores recebendo um "último" acerto, cabos
comprados nas lojas do porto, telefonemas desesperados para tripulantes retidos
em aeroportos fechados.
Conforme esperado, as milhas iniciais foram cumpridas em orça (vento contra),
que foi pouco a pouco folgando, facilitada pelo contorno do nosso litoral
nordeste. O mar se manteve calmo durante todo o percurso. As travessias foram
muito rápidas e divertidas.
Como sempre, nos contatos via rádio, discutiu-se assuntos diversos como a
estratégia de cada comandante de navegar mais próximo ou afastado de terra,
divulgou-se grandes e pequenas mentiras tais como o tamanho e peso dos peixes
fisgados ou a velocidade média obtida "exclusivamente" com o uso das velas.
Ouviu-se ainda conversas apaixonadas de namorados e esposas/maridos separados
circunstancialmente.
A constante preocupação com a segurança da flotilha foi mais uma vez exercida
pelo registro diário das posições dos veleiros, num regime de mutirão onde os
barcos com SSB recolhiam as informações dos veleiros próximos e passavam para a
nau capitânea Tan Tan e seu incansável comandante François, que sempre tinha um
comentário animador para cada contato. Houve ainda um fato inusitado: o veleiro
Kiwi Mar que estava com problemas em seu rádio VHF e atropelou um dispositivo de
pesca ficando também sem motor, passou via SSB na Roda dos Navegantes (uma rede
de navegantes do atlântico) um pedido de ajuda para entrar em Recife para outro
veleiro que contactou o François via telefone celular. Imediatamente o François
acionou os barcos que estavam nas proximidades de Recife e o Aya rebocou o Kiwi
Mar da entrada do porto para a segurança do Cabanga Iate Clube.
Em Recife encontramos já o clima da maior festa da vela brasileira, que reúne
amistosamente regateiros e cruzeiristas, caracterizado pela confraternização, o
re-encontro de velhos conhecidos, o estabelecimento de novas amizades e
parcerias, o compartilhamento da informação náutica. A regata Recife-Noronha
realmente é um excelente pretexto para este cruzeiro de 3000 milhas.
Agora a grande expectativa é para a largada da regata no dia 25 e a semana de
turismo ecológico em Fernando de Noronha.
João Carlos a bordo do veleiro AYA
A Ilha (23/09/2004)
"Coisa que gosto é poder partir sem ter planos, melhor ainda é poder
voltar quando quero" - Milton Nascimento
Presença constante no imaginário da maioria dos
velejadores, a utopia da frase da música de Milton Nascimento pode muito bem
caracterizar o espírito do navegador que se dirige a ilha de Fernando de
Noronha.
Difícil descrever com exatidão a dimensão do evento
organizado anualmente pelo Cabanga Iate Clube de Pernambuco, a Regata Recife
>> Fernando de Noronha - REFENO. Estão aqui aproximadamente 150 barcos de
vários estados e até estrangeiros.
A mobilização é muito grande desde o início de junho
quando os primeiros veleiros começam a se deslocar para o nordeste em percursos
de até 2000 milhas só de vinda. Perscrutando aqui e acolá, vamos aos poucos
desvendando os caminhos que cada barco, cada tripulação cumpriu com o objetivo
maior de chegar a nossa ilha de Fernando de Noronha a bordo de um veleiro. Sim
porque, seguramente, para a maioria, o mais importante desta jornada não é a
regata em si; É realizar a travessia oceânica de 300 milhas que separam o
continente desta ilha mágica, usando o meio de transporte mais ineficiente e
desconfortável que existe, comendo e dormindo em prestações, para depois
sentir aquela satisfação incontrolável de conquista. Impossível ficar
alheio. Mesmo os mais experientes, aqueles do tempo pré-GPS em que, as vezes, a
ilha era avistada pela popa, sentem uma enorme satisfação de fazer parte deste
seleto grupo que se preparou, se arriscou, se endividou, brigou com o chefe ou
com a namorada para poder estar aqui e rumar para Noronha. Divertir-se com as
histórias de cada um é o melhor programa enquanto se aguarda o grande dia da
largada. O velejador, seja ele veterano ou neófito, sempre tem uma forma melhor
de executar uma tarefa, poupar energia ou água, ancorar, ajustar as velas.
Formam-se intermináveis discussões nas rodas do Palhoção (bar do Cabanga),
cada um defendendo o seu ponto de vista, sempre mais correto e completo do que o
dos outros. Nas conversas somente entre tripulantes, o assunto invariavelmente
é o mesmo e todos dizem respeito ao comandante. Como aquela tripulação que
quando o comandante mencionava a palavra balão ou gennaker, um descia para o
banheiro, outro dizia que estava meio mareado, outro que ia descansar pois já
estava acordado há 15 minutos. Há ainda uma reclamação geral da tripulação
feminina contra a tirania dos maridos-comandantes, sempre muito pouco gentis nas
ordens durante as manobras críticas, e que, depois, arrependidos, agem como se
aquele tratamento fosse a forma adequada de se manter a disciplina a bordo. Os
imunes ao enjôo tripudiam com os demais, comendo acintosamente as mais diversas
iguarias de bordo. Uma vez no porto, o comandante distribui tarefas para todos,
que incluem invariavelmente a limpeza do banheiro, a troca do óleo do motor, a
compra do gás, enquanto ele vai providenciar o registro do barco e outras
formalidades e só aparece quando tem certeza de que todas as tarefas
"sujas" já foram executadas. Outra característica dos comandantes do
veleiro de cruzeiro é não confiar no trabalho de nenhum tripulante. Como
aquele comandante que afixou nas laterais do cockpit uma tarja verde outra
vermelha com os dizeres Boreste e Bombordo para que a tripulação (ou ele?!)
não se confundisse nas manobras (veja a foto).
Mas o melhor de tudo está para chegar: avistar Fernando de
Noronha depois de dois dias de navegação, velejar ao longo de sua costa NW
para cruzar a linha de chegada da regata, baixar a sua âncora naquela água
azul turquesa cristalina e sentir que valeu a pena. Nesse momento, parece que o
tempo pára. Os problemas corriqueiros ficam tão distantes quanto esta ilha
brasileira, que tem seu próprio ritmo, seu próprio clima e fauna, e até seu
próprio fuso horário, uma hora antes de Brasília.
João Carlos, a bordo do veleiro AYA