JOÃO
CARLOS BRITO - joao@veleiro.net
Vamos à regata Vitória – Trindade do próximo
ano? O convite do amigo Thadeu para compor a tripulação do AYA na mais longa
regata oceânica do Brasil, re-acendeu aquele velho espírito competitivo já
adormecido no cruzeirista inveterado e acomodado. Aceitei para logo em seguida
me arrepender. Consultando as cartas piloto e as previsões de vento para o
percurso de 1200 milhas náuticas (ida e volta) no sentido oeste >> leste, me dei
conta de que a ida para a ilha seria um contra vento muito apertado e a volta
uma popa rasa, as condições de mareação que o cruzeirista mais odeia. Além
disso, nem sempre é possível desembarcar na ilha devido às condições do mar. Nos
meses que seguiram ao convite, oscilei entre a euforia e a dúvida. A escolha do
restante da tripulação me confortava. Pelo menos teria um grupo de velhos
conhecidos: Ivan e Ricardinho com quem já naveguei muitas milhas e Christina
minha namorada, além do Comandante Thadeu e um amigo seu, o Ibate.
O AYA é um veleiro de 40 pés (Cabo Horn 40), assinado pelo escritório do
projetista Roberto Mesquita de Barros, de madeira moldada, muito bem construído
pelo estaleiro estrutural de Cabo Frio. Com um interior luxuoso em mogno
envernizado, o barco está muito bem equipado, tanto no que diz respeito as
instalações internas (cozinha, banheiro, cabines) quanto a instrumentação de
navegação e comunicação. Está equipado com uma vela grande, uma genoa 2 com
enrolador no estai de proa e uma genoa 3 com enrolador num estai intermediário.
Conta ainda com um balão assimétrico. É um barco típico de cruzeiro, com uma
enorme tancagem de água (700 litros) e diesel (350 litros), muitas ferramentas e
peças de reposição, um conjunto de âncora mais corrente na caixa de proa pesando
180 kg, uma âncora reserva de 30 kg, geladeira e freezer, muitos armários,
livros, utensílios de cozinha e tudo o mais necessário a um confortável
cruzeiro.
A regata Vitória – Trindade (http://www.radioeldoradofm.com.br/aventura/brasilis5/site/INDEX.ASP),
denominada Eldorado Brasilis, já está na sua quinta edição, com um número
crescente de inscrições e interesse da comunidade náutica. Mistura na raia os
barcos exclusivamente de regata com os de cruzeiro; tripulações profissionais
com famílias inteiras. Nesse ano, 20 barcos se inscreveram, três não largaram e
três retornaram a Vitória sem completar o percurso.
Eu já conhecia o AYA desde a época da sua construção em Cabo Frio. Já havia
velejado rapidamente com ele logo que foi para a água em julho de 2000. Como o
barco estava no Rio, combinei com o Thadeu que iria com ele para Vitória, uma
forma de conhecer melhor o barco e seus sistemas.
Saímos
do cais do Iate Clube do Rio de Janeiro no dia 10 de janeiro de 2004, com uma
previsão de calmaria no início da viagem e ventos de nordeste para o restante.
De fato, motoramos sem vento até próximo do Cabo de São Tomé quando entrou o
vento nordeste muito forte, de 25 – 30 nós com mar proporcional. Seguimos a
motor e vela para cumprir o percurso de 270 milhas em 46 horas. Nesse trecho já
fiquei muito bem impressionado com o AYA que conseguiu suportar o vento contra e
ondas altas com uma ótima performance.
Em
Vitória a festa já estava bem organizada pelo Iate Clube do Espírito Santo. Nos
dias anteriores a largada, havia uma previsão de mar muito agitado com ondas de
até 5 metros para a área da regata. Houve um momento que os organizadores
pensaram em adiar a largada. Como a Marinha, por dificuldades financeiras, não
iria enviar uma embarcação para acompanhar a regata, a organização arrumou um
catamarã a motor (SUPERNOVA) para esta tarefa. Esta embarcação, no entanto,
somente daria suporte em caso extremo de abandono de alguma embarcação. Não
poderia fazer o reboque nem teria autonomia de combustível para resgate caso
tivesse que se deslocar por uma distância muito grande.
A
largada às 12h35m do dia 17 de janeiro foi com um já esperado mas inusitado
vento sudoeste de 20 nós com rajadas de 25 e mar meio agitado. Logo no início, o
catamarã Galileu (St Francis 44) teve problemas em sua genoa (costurada depois
durante a regata) e o Farasan (Fast 500) com sua buja. O Até Logo (Trimarã 28
pés), justificando o nome, retornou após algumas milhas por supostos problemas
com a tripulação e o VMAX 3 (Fast 500) por problemas técnicos não especificados.
Seguimos chacoalhando num vento de través com o mar meio agitado. Como era de se
esperar, nesse primeiro dia a tripulação do AYA, meio mareada meio preguiçosa,
se limitou a comer sanduíches e biscoitos. Todos na tripulação tinham
experiência em longas travessias e combinamos que faríamos três duplas para
cumprir turnos de duas horas. Seguimos no rumo direto para Trindade com a grande
no segundo rizo e buja e fizemos 166 milhas nas primeiras 24 horas, numa ótima
média de 6,9 nós.
No
segundo dia o vento sul/sudoeste continuou soprando porém um pouco mais fraco,
na casa dos 15 – 20 nós e a previsão de mar muito agitado não se confirmou.
Colocamos a grande no primeiro rizo e abrimos a genoa. Fizemos 150 milhas nesse
segundo dia. Com a tripulação mais acostumada ao balanço, iniciamos a exploração
do freezer do barco onde a esposa do Thadeu havia colocado várias iguarias
congeladas: torta de palmito, de cebola, de frango, arroz com bacalhau, caldo de
feijão, kibe. O único trabalho que tínhamos era de descongelar a embalagem,
esquentar e servir. A noite fazíamos um lanche com sanduíches, sopas ou macarrão
instantâneo. De sobremesa tivemos chocolate, goiabada com queijo, jujuba e
outras pequenas guloseimas. Christina, inconformada com a facilidade dos pratos
congelados, preparou uma “pasta” com molho especial para o terceiro dia, uma
torta de limão, mousse de chocolate e várias saladas para servir de
acompanhamento.
O
vento continuou do quadrante sul mais para sueste e enfraqueceu no terceiro dia
e fizemos 144 milhas. Até esse ponto a regata estava se desenrolando num regime
de ventos totalmente atípico para esta região e época do ano. O esperado era um
nordeste em todo o percurso, uma orça fechada.
O AYA se colocava muito bem no terceiro “pelotão”, na frente do Farasan (Fast
500) do Albatroz (Delta 36), do Quiricomba (Two Ton 41 pés da Escola Naval), do
Gato Xadrez (Cal 9.2), do Kanaloa (Van De Stadt 50 pés), do Mobius (Trimarã 60
pés) e dos dois Vini Nautos (projeto especial de Thierry Stump de 42 pés de
alumínio). O Sorsa (NM 43 pés) comandado pelo campeão olímpico Eduardo Penido e
o Galileu (St Francis 44) dispararam na frente. No segundo bloco seguiam o
Marlim (Beneteau 40.7 da Escola Naval), o Silence (Barracuda 45 pés) e o
Tangaroa (Fast 500). O Mestre Rosalino (Brasília 32) de nosso amigo Luis
“Poesia” perdeu o mastro no meio do caminho e retornou a Vitória com uma
mastreação de fortuna.
Todos
os dias, por volta das 18 horas, fazíamos contato via rádio SSB com Dona América
em Curitiba para dar e receber notícias e bater um papo furado. Nossos
familiares se mantiveram informados telefonando para o nosso “Anjo” da Guarda.
Recebemos ainda todos os dias via SSB + computador o fax meteorológico com a
carta sinótica e previsão de vento e mar da Marinha do Brasil.
No quinto dia (21/01) chegou a esperada calmaria das proximidades de Trindade
somente interrompida pela rápida passagem de grandes nuvens de chuva e vento (pirajás).
A nossa esperança de alcançar a ilha nesse dia foi embora junto com o vento. Nos
arrastamos durante todo esse quinto dia, fazendo as vezes 1 nó de velocidade com
um vento
leste/nordeste.
Aproveitamos para mergulhar na água absolutamente azul e até para tirar algumas
cracas adquiridas em Vitória. A Ilha, avistada na tarde do quinto dia, parecia
inatingível. Desde a manhã do quarto dia, o nosso comentário mais freqüente era
que chegaríamos “no dia seguinte”, dia esse que não chegava nunca. A noite do
quinto para o sexto dia foi de intenso trabalho para ganhar umas poucas milhas.
Nesse dia de calmaria, fomos ultrapassados pelo Quiricomba e pelo Vini Nautos
Nanuk.
Chegamos a Trindade na manhã do dia 22 de janeiro às 10h27m num total de
117h52m, duas horas
depois
do Quiricomba e uma hora depois do Vini Nautos Nanuk.
Trindade é uma pequena ilha, muito árida, rochosa e praticamente sem praias.
Possui uma guarnição da Marinha do Brasil que se reveza a cada 2 meses. Há muita
dificuldade de abastecimento devido as condições de desembarque e o isolamento é
muito grande. Tem uma beleza diferente e um mar cristalino em sua volta. Vimos
poucos peixes e enormes tartarugas.
O regulamento da regata permite uma permanência de 48 horas na ilha. Como o
desembarque é difícil optamos por fazer uma curta parada para mergulho e seguir
quase direto para Vitória.
Saímos
de Trindade às 12h16m do dia 22 de janeiro. A tripulação bem alimentada,
descansada, entrosada, de muito bom humor estava animada para o retorno de vento
em popa, literalmente. O enorme estoque de água doce do AYA permitiu banhos
todos os dias para a tripulação. O tempo era gasto com brincadeiras, fofocas,
compartilhar imensas histórias, algumas verdadeiras outras nem tanto, e,
naturalmente, o ajuste das velas. O Comandante Thadeu, muito liberal, se
desdobrava para relevar as criancices da tripulação e manter a disciplina da
regata. Logo no primeiro dia, no primeiro pirajá, demoramos a baixar o balão
assimétrico que rasgou próximo ao punho da escota. Desprovidos da vela para
vento fraco, nossa performance caiu muito em relação aos outros barcos. Armados
a maior
parte
do tempo em Asa de Pombo, a nossa única atividade era dar um jaibe na genoa na
passagem das grandes nuvens de chuva. A manobra exigia a colocação e retirada do
pau de spy, o que provocou muitas brincadeiras maliciosas envolvendo o
Comandante que, educadamente, se mantinha impassível. O retorno, na verdade, foi
um grande passeio a vela de 600 milhas com vento de popa e mar muito calmo.
Chegamos
a Vitória às 20h42m do dia 27 de janeiro, no tempo de 128h26m, compondo um total
(ida e volta) de 246h28m, o décimo tempo da regata. A nossa média geral para as
1246 milhas foi de 5,1 nós. A organização recebeu cada barco com uma comitiva,
fotógrafos e champagne.
O Sorsa bateu o recorde da regata com um tempo total de 174h7m e uma incrível
média de 7,2 nós, seguido de perto pelo cat Galileu com 180h54m e média de 6,9
nós.
Seguiu-se a festa da premiação e o AYA, além de segundo na classe Bico de Proa,
recebeu um inesperado troféu: o “Dinossauro”, mais conhecido como “barco à
velho”, por ter a maior média de idade entre as tripulações.