VELEIRO UTOPIA
Relatos do comandante Marco Cianflone
Tailândia a Índia (janeiro/2005)
Depois do tsunami que balançou a Ásia, cancelei meu ano-novo em Koh Phuket, e parti da Tailândia no dia 30/12, com destino a Cochin, na Índia, 1500 milhas de distancia.
Segue o relato do que aconteceu:
DIA 01/01/2005 - 01:00h, uma nuvem carregada de ventos fortes e aguaceiro dão um jibe na vela grande, com bastante violência, produzindo 2 rasgos consideráveis na altura da segunda cruzeta. Sem chance de voltar 250 milhas pra trás contra o vento e a corrente. Sigo em frente só com a genoa, velocidade 5 kt, esta ótimo.
DIA 03/01 - O piloto automático hidráulico não responde. Removo os 250 litros de água em garrafões que estão na cama de popa, para dar acesso ao compartimento do piloto e jogo tudo lá pra frente. A forca do piloto arrancou um pedaço do quadrante do leme (de alumínio) no qual esta fixado. Vai ser preciso soldar uma parte do quadrante, mas só na Índia. Tudo bem, tenho um grande aliado; o leme-de-vento, um piloto automático mecânico, que usa a força do próprio vento e a forca hidrodinâmica da água do mar. Somente com a genoa e o leme-de-vento, as médias de velocidade estão acima dos 5kt. Começo a fazer o reparo da vela grande, o qual demora 3 dias para ser concluído.
DIA 05/01 - Escuto barulho de água nos porões. O Utopia faz muita água, as 2 bombas elétricas de esgotamento não param de trabalhar. Começo a abrir todas as tampas dos assoalhos, procurando o grande vazamento. Achei!!! A gaxeta (espécie de barbantes que envolvem e vedam o eixo do motor desapareceram. Rios de água entram por ali. Tenho que remover aqueles 250 litros de água ainda mais pra frente, os garrafões estão por todos os lados. Começo o ingrato trabalho de trocar a gaxeta, pois o barco tem que estar parado para o eixo não virar, mas o mar não para de balançar. A mangueira de água por onde passa o eixo é estrangulada com uma braçadeira de aço inox, para estancar o vazamento, o eixo é desconectado da flange do motor, e a gaxeta é trocada. Foi 1 hora de trabalho, tudo normal. O tempo é nublado. O desafio agora é manter vigilância no tráfego de navios, pois entrei na rota dos monstros que vem e vão na rota Suez/Singapura/Suez. São aproximadamente 25 a 30 navios por dia, e a noite não dá pra relaxar.
DIA 06/01 - Mau tempo, ventos fortes de manhã, Utopia voa baixo a 7 kt, só com a genoa. Ao meio-dia o vento acaba, mas a chuva não, péssima visibilidade, radar ligado o tempo todo. A noite a chuva da uma trégua, o vento volta , e a vela grande devagarzinho começa a retomar seu lugar. Muitos navios!!! As vezes tenho que ligar o motor para ajudar a me desviar deles.
DIA 07/01 - Ventos excelentes o dia todo, 25 a 28kt. O Utopia faz 79 milhas em 12 horas. O tempo começa a abrir. Olho para o remendo da vela grande e vejo um pequeno furo. Vela embaixo para novo reforço. Esta feito, mas deixo a vela grande arriada, o Utopia não esta precisando dela agora. Vem a noite, o vento continua firme. Os navios já não me preocupam mais, pois após 4 dias me desviando, agora só bato o olho, e pela composição das luzes, já sei a trajetória que seguem.
DIA 08/01 - São 08:00h, estou passando o traves de Galle, no Sri Lanka. A massa de terra acaba com o vento, tenho que motorar por 12 horas(sem piloto automático), até atingir o Golfo de Mannar, que separa a Índia do Sri Lanka, uma faixa de mar de vento nordeste canalizado. O vento entra com tudo, 25 a 30 kt, o Utopia engole 200 milhas nas próximas 36 horas.
DIA 09/01 - A vela grande não agüenta e um dos remendos se abre todo. Vela grande embaixo e vamos só de genoa de novo.
DIA 10/01 - O Utopia se aproxima da costa da Índia e o vento desaparece. Assim sendo, me restou ficar no leme nas próximas 34 horas num dia e noite bonitos e mar espelho.
DIA 11/01 - 16:00, o Utopia esta ancorado em frente ao Port Control Building, em Cochin, depois de 12.5 dias e 1521 milhas navegadas, Ufa!!!!! O cansaço é grande, o alivio ainda maior, e a satisfação é ENORME.
Eu poderia dizer que esta foi a pior travessia ate agora, mas prefiro dizer que ESTA FOI A MAIOR PROVAÇÃO ATE AGORA. A escala na Índia agora ficou menos turística, e mais técnica, vários reparos para fazer, pois a próxima travessia são 1860 milhas ate o Porto de Aden, no Yemen, porta de entrada do Mar Vermelho.
GRANDE ABRAÇO A TODOS MARCÃO
Oman a Eritrea (fevereiro/2005)
Oi amigos
Tentei responder alguns emails em Oman, mas não rolou conexão na internet. Eu passei 6 dias no Sultanato de Oman, no sul da Península Arábica. Foi legal, meu primeiro contato com o mundo árabe. Deserto, camelos e Ali Babás pra todos os lados. Parti de Oman no rumo de Porto Aden, no Yemen, mas os ventos melhoraram, e resolvi seguir para Massawa, na Eritrea, já dentro do Mar Vermelho. Esse trecho foi um pouco tenso, pois o Golfo de Aden é o trecho dos ataques piratas a veleiros. Entre 1999 a 2004, foram 17 ataques entre as costas do Yemen e Somália. Tudo bem, escapei de mais essa. Passei o maior sufoco!! Após a passagem do estreito de Bab El Mandeb, porta de entrada do Mar Vermelho, o vento começou a aumentar e aumentar e aumentar e aumentar....... As 19:00 desliguei o piloto automático e o leme-de-vento e comecei a levar o Utopia na mão, empopado com ventos de 50 nós, rajadas até 60 nós. Era necessário preparar o barco para surfar as ondas que já estavam na casa dos 6 metros, qualquer vacilo poderia ter sido um grande problema. Assim foi ate 03:00 da manha, quando mudei a rota para Hanish Island, a 9 milhas da minha posição, onde cheguei no começo da manhã. Olhei meu rosto no espelho antes de dormir..... estava desfigurado pela exaustão. No dia seguinte descansei, ainda com rajadas de 55 nós, no entanto, a ancoragem era super segura. Dois dias depois cheguei em Massawa, na Eritrea, onde estou agora. Onde é isso? A Eritrea foi província da Etiópia em 1962, ai começou a guerra civil pela independência, que durou 30 anos(ate 1993). É buraco de bala e canhão pra todos os lados, a vida por aqui não é nada fácil. Continuo seguindo rumo norte no Mar Vermelho, Sudão e Egito são as próximas paradas. Parece que virei galã de revista, saiu um artigo do tsunami na revista Náutica. Parece brincadeira, não fiquei famoso como piloto de helicóptero, mas sim como vagabundo!!!
Ao Cmte Neves, obrigado por "finalmente" ter entrado na roda da conversa.
GRANDE ABRAÇO A TODOS MARCÃO
Suez (março/2005)
Alô galera!!!!
Acabei de chegar em Suez, no Egito.
O ultimo terço do Mar Vermelho não foi muito fácil, pois os ventos contra de norte sopram entre 25 e 35 nós, as vezes por 10 ou mais dias. Não tive opção, ao invés de esperar pelas calmarias, para seguir no motor, como faz a grande maioria, decidi ir pra guerra!!! Foram 3 empreitadas contra o vento, sendo a ultima a mais difícil, foram 60 horas contra o vento. Fui subindo no rumo N-NE, até a costa da Arábia Saudita, depois voltava para a costa do Egito. O barco batia tanto nas ondas, que não dava nem pra cozinhar, nem pra dormir; apenas deitar no assoalho para descansar o corpo, ingerir frutas, biscoitos ou pão, e lá fora, só vestido com roupa de mau tempo, pois as ondas lavavam o convés e dava cada banho sarado!!! Mas valeu a pena. Estou orgulhoso do meu amigo Utopia, foi super valente. O presente de páscoa veio no Golfo de Suez; calmaria nas últimas 160 milhas.....dá-lhe motor!!!! Agora deixo o barco 1 semana aqui em Suez, antes de passar pelo canal. Vou
até o Cairo, Luxor e Karnac, para ver um pouco das pirâmides, esfinges, Museu do Cairo.....eu sempre quis ver o Egito. Depois vem o verão no Mediterrâneo e em setembro parto de Gibraltar, no rumo do Brasil. Já cumpri 26.000 milhas, e 82% da volta ao mundo. Faltam 5.000 milhas, tá cada vez mais perto!!!
A gente se vê na estrada...........
ABRAÇO FORTE MARCÃO
Suez a Turquia (abril/2005)
Alô!!!
A primeira travessia no Mediterrâneo foi um pouco cansativa. Ventos de norte e noroeste exigiram muito do Utopia contra o vento, mas depois de 3 dias, cheguei na Turquia, terra do meu Avô materno. Por ser ainda começo do outono, ainda rola um frio sarado a noite, mas todo o resto compensa. Nesta costa sul da Turquia, temos picos nevados o tempo todo no visual, são centenas de ancoragens em centenas de baias super abrigadas, com vilarejos super simpáticos, a gente tropeça nas ruínas e tumbas do Império Bizantino, estão espalhadas por toda a parte, e curiosamente, um arbusto típico da região exala um perfume maravilhoso no ar!!!.......Estou apaixonado por aqui. Pra completar esse paraíso na terra, a comida é divina. Depois de 3 meses no mundo árabe, que de bom só tem a ética moral, voltei pro mundo ocidental, babilônico, do jeito que a gente gosta. Que delícia......manteiga, pães de todos os tamanhos e sabores, queijos, queijo ralado, e todos aqueles temperos mediterrâneos, coisas simples que quase me mataram de saudade. Tô me acabando!!!!!!
Visitei primeiramente uma micro baia dentro de outra baia chamada Ucagiz Liman, e agora estou numa cidadela chamada Fithiye, com as montanhas nevadas bem na minha frente. Tá um show, recomendo pra todo o mundo.
As últimas depressões do inverno estão rolando agora, não muito longe daqui, força 8 (33 a 42 nós) e 9 (43 a 48 nós) na escala Beaufort. Ontem, quando vim para cá, tive ventos força 7, de popa, mas cumpri fácil as 66 milhas. A temporada de verão começa daqui a duas semanas, aí vai ser uma perdição........Vou aumentar a minha estadia na Turquia para 1 mês, depois mais 1 mês na Grécia, e divido os dois últimos meses de mediterrâneo entre a Sicília, Sardenha, Ilhas Baleares. Depois disso tudo, é Atlântico de novo, no rumo do Brasil.
A gente se vê na estrada.
ABRAÇOS A TODOS