Diário 7 - Natal, Tibau do Sul e Baia Formosa
(8/11/1999 a 7/12/2000)
Estamos novamente no Jacaré, onde passaremos Natal e Ano Novo, seguiremos depois para Recife onde encontraremos a turma do Yahgan e Taai-Fung, que foram passar as festas no Rio, deixando seus barcos no Cabanga Iate Clube de Pernambuco.
A velejada de Cabedelo a Natal foi tranqüila, com mar calmo e vento sueste de 12
nós. Percorremos as 92 milhas em 17 horas, chegando na manhã do oitavo dia de novembro. A entrada no porto
é bem sinalizada e apesar da grande correnteza da maré vazante foi fácil.
Natal é conhecida como a cidade do sol e verificamos ser verdade, pois neste
mês de novembro as raras chuvas que vimos não duravam mais de três minutos. A cidade
está em festa pois no dia 25 de dezembro (não poderia ser outra data) comemorará seus 400 anos.
O Iate Clube do Natal no lado direito do rio Potengi, a uma milha de sua foz, com
água limpa nas marés altas, nos recebe muito bem. O Comandante Rogério, administrador geral, e o gerente Bosco logo nos fazem ver que os veleiros visitantes tem direitos iguais aos
sócios, estando franqueado o uso de todas as instalações do clube, poita para amarrar o barco e parada no
píer para manutenção. Não cobram nenhum tipo de taxa nem estabelecem prazo de
permanência. Alem disto, o clube fica bem localizado, a poucos metros temos padaria, supermercado,
farmácia, correio, banco, entreposto de frutos do mar (peixe, lagosta e camarão
fresco) e condução fácil para os demais lugares da cidade.
No dia da nossa chegada, a preguiça do Helio em colocar o bote n'água, nos deixou de carona no bote do Taai-Fung. A noite quando
retornávamos a bordo, Ricardinho foi nos levar, para depois pegar Ivan e Egle. Quando
estávamos quase chegando no MaraCatu, com maré de lua nova baixando a toda velocidade, o motor pifou e passamos direto, rumo a
África. Imediatamente começamos a remar para a margem, Ricardinho com o único
remo a bordo e Mara e Helio usando as sandálias como remo. Com muito esforço
chegamos nas pedras do quartel do exército. Helio foi caminhando feito um cabrito e com dificuldade puxando o bote enquanto Ricardinho com o remo desviava das pedras,
até que de repente apareceu um soldado armado até os dentes e mandou voltarmos para o rio. Gastamos muita saliva para explicar nossa
situação, até que finalmente, depois de chamar outros dois soldados também
armados, e obter autorização do oficial do dia, concordou em nos deixar passar por dentro do quartel a
pé para retornar ao clube, deixando o bote amarrado numa pedra. Neste meio tempo,
João que tinha ido para o clube notou nosso desaparecimento e seguiu com o Ivan em seu bote iluminando tudo com um grande holofote. Depois de algum tempo conseguimos sinalizar para eles e como sempre tudo acabou bem, todos a bordo de seus barcos, bote resgatado e
ocorrência no livro do Exército.
Reencontramos o Orion e a Neca do Bicho Papão e ficamos sabendo das aventuras de ficar ancorado em Fernando de Noronha sem leme, enfrentando uma ressaca de 4 dias e de acordar numa madrugada e ver a ilha a 6 milhas de
distância... Reencontramos também a Ana do Aurora que aguardava o Olmar renovar o contrato de
patrocínio para seguir viagem. Lucia e Zeca, que construía Bruce Farr 38 em Bracuhy e agora mora em Natal, nos deram varias dicas da
região e a Valeria, que já velejou mundo a fora num catamarã com o Pedrão, foi nossa cicerone.
Percy e Zilda do Galileo que tinham ficado em Cabedelo não agüentaram de saudades e juntaram-se a
nós.
O divertimento predileto desta pequena comunidade de velejadores era bater papo na varanda e na piscina do clube, com
música ao vivo e com direito a um pôr do sol tão bonito quanto o do Jacaré. Sempre
assistíamos a entrada dos navios no Porto de Natal, logo após o Clube. Faz pouco tempo que ele foi dragado para 30
pés de profundidade e navios enormes passam a menos de 50 metros dos barcos. Ricardinho, que ainda
está na adolescência, ficava agoniado com a programação do grupo e insistia todos os dias para irmos com ele para o Shopping. Depois descobrimos que ele estava fazendo bico de Papai Noel por
lá.
A cidade de ruas largas oferece muitos passeios e caminhadas. Aproveitamos para esticar as pernas e fomos varias vezes a
pé até as dunas de Genipabu, mais ou menos 9 km, sempre encerrando a caminhada com um delicioso peixe frito com cerveja para uns e
água de coco para outros. Apreciamos as dunas, fazendo esqui-bunda (descida das dunas em pranchas de madeira) e dando um alo para os
dromedários que levam turistas para passear. Outra caminhada gostosa era até o Forte dos Reis Magos e depois as praias urbanas do Forte, do Meio e dos Artistas, aproximadamente 6 km.
A Valeria nos levou de buggy para as praias e lagoas ao sul de Natal. As praias
são cercadas por recifes, formando piscinas naturais durante a maré baixa e um visual de deixar qualquer um de boca aberta, como a de Pirangi. As lagoas
são verdadeiros oásis, água cristalina e doce no meio das dunas e obviamente um monte de bares ao seu redor. A mais bonita delas
é a do Carcará.
Aproveitando a visita do Beto e Liane, irmã do Helio, fizemos o circuito das dunas e lagoas ao norte da cidade. Fomos
até Muriú, próximo ao Cabo de São Roque e aproveitamos as delícias do aero-bunda (descida das dunas pendurado em cabos, como
teleférico, até bater de bunda na água) na Lagoa de Jacuma.
O melhor carnaval de Natal é o Carnatal, que ocorre no início de dezembro. Participamos dos preparativos desta grande festa com um show da Banda Pimenta Nativa no Iate Clube e com a
saída no bloco Muitos Carnavais pelas ruas da cidade.
Os prédios do Largo e da rua Chile, próximo ao porto, estão sendo restaurados e a noite funcionam
vários bares, com mesas na rua. Experimentamos e recomendamos o Blackout, com
música ao vivo, drinks diferentes e um purê de macaxeira com carne de sol e queijo de coalho ao forno que
é o bicho.
Depois de curtir bastante as delicias de Natal e cansar de esperar pelo vento leste/nordeste que descobrimos nunca acontecer por aqui nesta
época, seguimos no segundo dia de dezembro, a motor e com vento sueste para Tibau do Sul, 32 milhas ao sul, na beira da Lagoa de Guarairas, hoje ligada ao mar.
Sabíamos que a viagem não seria agradável, pois além de ter vento na cara,
iríamos enfrentar uma forte correnteza contra (2 nós), pois a corrente que atravessa o
Atlântico da África para o Brasil (leste para oeste), ao atingir nossa costa se divide em duas aproximadamente na latitude 06, uma para o norte e outra para o sul. Como
estávamos na latitude 05, teríamos que enfrentá-la ainda por algumas milhas.
O Abel e a Rosane do Sun Coast tinham nos dado a dica de entrar em Tibau. Não
dá para entrar na barra sem auxilio de pessoas locais, principalmente porque ela muda ao longo do tempo, mas o Danilo, um velejador italiano que hoje mora
lá, tem o maior prazer em buscar os veleiros lá fora. A barra no inicio assusta um pouco, pois vamos em
direção a praia, com onda estourando para todo lado. Quando achamos que vamos encalhar na praia, ficamos paralelo a ela e ai pegamos as ondas de lado, mas logo depois ficamos protegidos pelos recifes, a profundidade volta a subir e quando chegamos na ancoragem
é um espelho cercado por altas falésias, perturbado apenas pelos saltos dos golfinhos.
Tibau do Sul é uma bela e pequena vila que não tem nem telefone ainda, mas fica a apenas 7 km da Praia de Pipa, muito badalada e com
características turísticas de Búzios, ou seja, bares, restaurantes, boates, boutiques, lojinhas e pousadas para todos os gostos. Curte-se Pipa tanto de dia, na praia cercada de
falésias, recifes e piscinas, como a noite, onde a farra vai até o sol raiar. A caminhada de Tibau
até Pipa pela praia na maré baixa é uma delicia.
Aproveitamos que os barcos estavam bem ancorados e fomos de kombi fazer um piquenique em Barra de Cunhau, 30 Km ao sul. Passamos o dia na sombra de uma amendoeira e vendo as dunas de areia branca que formam a barra de
água cristalina. Curtimos uma boa velejada no barco a vela de Seu Menino (uma
espécie de jangada) da entrada da barra até os manguezais.
Helio vinha o tempo todo fazendo propaganda de um lugar um pouco mais ao sul, chamado Baia Formosa. Decidimos
visitá-la, foi a maior roubada. Saímos de Tibau a tarde, por causa da maré, mas com tempo de chegar a Baia Formosa com luz,
porém o vento na cara e a forte correnteza contra não nos deixavam avançar as poucas 14 milhas. Para complicar as coisas, o motor do Taai-Fung pifou e Ivan estava sozinho. Decidimos
então parar de qualquer jeito em Baia Formosa, para aguardar condições melhores e reparar o motor do Taai-Fung. Triste
decisão. A ancoragem é em lugar raso (3.5 metros, chegando a 2.8 na maré' baixa) e o barco fica filado de lado para as ondas que
além de existirem, estouram no costado, dando um tranco na corrente da âncora. O cabo de 12 mm que normalmente amarramos na corrente da ancora partiu e um dos dentes da coroa da trava do guincho entortou.
Logo que chegamos, Helio bastante cansado deitou para relaxar no assento e caiu no fundo do cockpit. Apesar da
música dizer que quem é do mar não enjoa, minutos depois pediu um Dramin, mas
acabou dando sermão para os peixes antes que Mara trouxesse o comprimido. Dormir foi quase
impossível e o melhor lugar era no chão do barco. Já eram quase 22 horas e Ivan
não conseguia chegar. Usando mais uma vez das vantagens de estar em grupo, Yahgan e sua valente
tripulação levantaram âncora e foram buscar o Taai-Fung.
Na madrugada da manhã seguinte, Ricardinho, que não conseguia dormir, já estava arrumando o motor do
Taai-Fung e as 9:30 levantamos âncora e desviando dos surfistas que pegavam onda na nossa proa
saímos daquele inferno. Onze horas após, com vento e correnteza na cara, ancorávamos
na tranqüilidade do Jacaré.
Aproveitando o final do ano, fizemos um pequeno balanço e para quem gosta de
números, ai vão algumas estatísticas:
Nos 6 meses de vida a bordo navegamos 2.114 milhas (3.910 Km) das quais apenas 198 milhas com
condições ruins, o que não chega a 10%. Ancoramos em 22 locais diferentes e visitamos outro tanto. Conhecemos muita gente e fizemos boas amizades. Helio notou que no mundo
náutico as pessoas perdem o sobrenome e ganham o nome do barco. Dos novos amigos
não sabemos sobrenome, profissão ou como ganham a vida. O mar nivela as pessoas.
Navegamos 384 Hrs (média de 5.5 nós ou 10Km/h), sendo 229 Hrs (60%) a vela e 155 Hrs com vela e motor. Como navegamos 16 dias, confirmamos a
estatística de que 90% do tempo se fica parado. A novidade é a limpeza periódica
da Unidade Móvel do MaraCatu (o bote de apoio) para tirar limo, barba verde e craca. Agora, toda noite subimos o bote e motor numa
adriça para tirá-los da água (é como se colocássemos o carro na garagem).
Consumimos 270 litros de diesel. Além das 155 Hrs navegando, usamos 50 Hrs para carga das baterias, o que nos
dá uma média de 1.32 litros/hora. Consumimos também 7 bujões de gás de cozinha (de 2Kg) e Helio e convidados consumiram 912 latas de cerveja.
No MaraCatu substituímos a mangueira de alimentação de diesel em Vitória; a ponteira do pau de spinaker que quebrou em Salvador; a
alça do burro na retranca e costura do carrinho da esteira da vela grande em Natal e um reparo na bomba de
pressurização aqui no Jacaré, confirmando a estatística que se gasta 2% do tempo em reparos num barco bem
construído e mantido e o restante do tempo se curte a vida.
Mara destroncou o braço em Vitória e foi cuidada por um médico/velejador de
graça em Salvador. Helio teve infecção intestinal e extraiu um quisto da perna num Hospital
Público em João Pessoa.
Helio comprou uma camiseta para presentear Mara, um óculos e 4 bonés para proteger a careca. Mara comprou 2 vestidinhos, 2 camisetas e uma
saída de praia. Dos iates clubes e marinas que paramos, pagamos estadia em Vitória
e uma taxa irrisória em Ilhéus.
O gasto médio mensal foi R$ 1.400,00 (se a freqüência em bares e restaurantes for reduzida, este valor pode chegar quase a metade), confirmando a teoria de que aqueles que vivem em terra, trabalham para pagar contas.
Temos recebido e-mail perguntando quem escreve os diários. Eles são escritos a quatro dedos. Mara redige o texto base, depois Helio coloca suas
impressões e os dois fazem a revisão final.
Agora fala Helio.
- Ta valendo a pena? Sim, foi a escolha mais acertada que já fiz.
- Sente falta de alguma coisa? Sim, dos amigos que deixei no Rio e do ar-condicionado.
- João do Yahgan me emprestou um livro chamado A Arte da Peregrinação onde o autor, Phil Cosineau, define
peregrinação como uma viagem com alma, ele diz também que a peregrinação
é uma jornada de risco e de renovação. Porque uma jornada sem desafio não tem significado; e uma sem
propósito não tem alma. Eu lhe desejo um Natal com muita paz e que em 2000,
início da era de aquário, você faça da sua jornada diária uma peregrinação.
Agora fala Mara.
- Ta valendo a pena? Sim, foi a escolha mais acertada que já fiz.
- Sente falta de alguma coisa? Sim, dos parentes e amigos que deixei no Rio e Angra, em especial meu filho Fernando e as vezes das enseadas de Angra e da cidade maravilhosa.
- Desejo a todos um Feliz Natal e que em 2000, além de viver com a gente as aventuras do MaraCatu, vivam
também suas próprias aventuras....
PS: Não deixem de curtir a foto em anexo!