Diário 8 - João Pessoa, Recife e Suape
(7/12/1999 a 21/2/2000)
Deixamos o MaraCatu bem ancorado no Jacaré e fomos até Recife (Mara nas mordomias do Yahgan já que João e Ricardinho faziam tudo e Helio com Ivan no Taai-Fung) ajudando nossos amigos a levar os barcos até o Cabanga Iate Clube, onde os barcos ficarão enquanto eles passam as festas de fim de ano no Rio. Reencontramos a turma do Bicho-Papão e do Simbad Sailor e conhecemos o Tatu do Maravida, que seguia para o Caribe. Aproveitamos e fizemos alguns passeios e um churrasco nestes três dias que ficamos por lá.
De volta a João Pessoa, fomos com Gustavo e Nana passar uns dias numa casa a beira mar em Tabatinga, que fica próximo a Tambaba, famosa praia dos pelados. Curtimos muito o passeio, as caminhadas na maré baixa ao lado das falésias, os banhos nas piscinas de coral, o peixe e inhame com gersal, nossa alimentação básica nestes dias. Só não conseguimos dormir direito, depois de sete meses a bordo estranhamos a imobilidade da cama, o que nos salvou de noites insones foram as redes armadas na varanda.
Na primeira manhã que caminhamos encontramos um despacho a beira mar com direito a tudo, inclusive um bode de bom tamanho sacrificado. A tardinha, os paraíbas de obra (autênticos, já que nasceram aqui) que construíam uma casa próximo não titubearam e após limpar o bicho fizeram um churrasco de bode regado a muita cachaça Pitu. Dizem que ficou uma delicia, não experimentamos.
Já a bordo encontramos o Jacaré cheio de veleiros estrangeiros, pois esta é a época boa para a travessia da Europa para o Brasil. Aproveitamos a proximidade do Natal e seguindo o exemplo da amiga Susy do Samba: organizamos o Natal dos Velejadores. Foi um sucesso! Todos compareceram e marcamos um novo encontro para o almoço do dia de natal, desta vez com direito a peru e amigo oculto. Nesta babel (estavam presentes franceses, ingleses, holandeses, sul-africano, americano de Manhatan, portuguesa da Madeira e brasileiros) ficou combinado uma audição diária do Bolero de Ravel acompanhado de caipirinha e pôr do sol, não necessariamente nesta ordem.
O Helinho do Mantra trouxe para Cabedelo um catamarã de 40 pés feito em Salvador. No domingo, enquanto ele mostrava os caprichos do barco para Paulo e Neném, os novos proprietários, aproveitamos para dar uma velejada com eles. Helinho conhece bem a região e depois de uma orça em direção ao Cabo Branco entramos por um passe para o lado de dentro dos recifes e ancoramos em Areia Vermelha. Depois de vários mergulhos e peixe frito feito a bordo, aproveitamos que a maré já estava alta e voltamos pelo lado de dentro dos recifes (não dá pra fazer isso com o MaraCatu pois chegamos a 0.9 m de profundidade), passamos pelo canal do Porto Velho contornando a Ilha da Restinga, seguimos o rio Paraíba passando pelo antigo aeroporto de João Pessoa - um píer onde atracavam os aviões que amerissavam (opa!) no rio, depois entramos no rio Mandacaru onde assistimos ao pôr do sol.
Passamos uma noite agradabilíssima na companhia da América, radioamadora de longas datas que coordena uma rede por SSB, ajuda e acompanha os velejadores brasileiros de seu apartamento em Curitiba. Aproveitamos que ela veio passar as férias aqui e fomos bater um papo pessoalmente, pois via rádio conversamos quase todos os dias desde nossa saída aí do Rio. A América é uma pessoa incrível e rimos bastante das suas estórias. Mara ficou emocionada ao ganhar um presente dela com a observação que era igual ao que Crespo, seu dengo, ganharia.
No último dia de dezembro, Ivandro, irmão do Helio, nos pegou de van e fomos, acompanhados dos amigos Tatu e dos holandeses Siemon e Jeannette, na casa do pai Paulo e já próximo da meia noite para a casa da tia Arlete, na praia do Cabo Branco. Engarrafamento faz parte de festa de fim de ano e Ivandro, na volta, entrou o ano dentro do carro. Foi uma festa linda e abriu o ano 2000 com chave de ouro. No amanhecer, estávamos na ponta do Cabo Branco esperando o sol, que apesar de toda a propaganda nasceu primeiro lá pelas bandas do Cabo de São Tomé no estado do Rio. A eclítica e a declinação venceram os marketeiros.
No primeiro dia de janeiro, após poucas horas de sono, recebemos a visita do Gildo que nos levou para passear de lancha pelos rios da Guia, Soé e Sarapó, um belo manguesal com pouquíssimas construções, ainda. Na volta, visitamos sua bela casa próxima ao Iate Clube e almoçamos frutas no seu imenso pomar (conhecemos o jambo branco que Mara adorou).
Ancoramos o MaraCatu todo embandeirado em frente ao grande palco armado pelo governo do estado em comemoração ao primeiro pôr do sol do século. Apesar de adiantado em um ano, foi uma delícia dançar com o som de Fuba acompanhado pela guitarra do Alex Madureira, ver o primeiro pôr do sol do último ano do século ouvindo a orquestra Metalúrgica Filipéia tocando o Bolero de Ravel e pular ao som de Chico Cesar com direito a uma canja de Escurinho e da cirandeira Lia de Itamaracá.
Era visível a felicidade do Helio por ter passado o natal e o ano novo com sua família, após tantos anos fora, principalmente por ter reencontrado os filhos Pablo e Joana que vieram passar férias por aqui, inclusive nos preparando um delicioso jantar de despedida.
Depois de um bom descanso das festas, preparamos o barco para seguir viagem. Deixamos o Jacaré depois do almoço do sexto dia de janeiro com um vento sueste de 10 nós e mar calmo, orçamos com a ajuda do motor até o Cabo Branco e velejamos a partir dai até Recife, chegando ao Cabanga no amanhecer do dia seguinte com uma bela cavala, que se suicidou no currico. Foi o primeiro peixe da viagem, esperamos que agora desencante e possamos usar nossa panela de barro com mais freqüência.
Desta vez conhecemos mais um pouco desta cidade que guarda marcas da presença portuguesa e holandesa. O Recife Antigo, zona portuária onde a cidade começou, está em processo de restauração. Lembra muito o Pelourinho de Salvador, porém menor e com uma arquitetura mais exuberante. Curtimos bastante os bares, a feirinha de artesanato, o tradicional leite maltado e as apresentações de frevo, forró e maracatu que acontecem nos finais de semana. Um deles, o Maracatu Nação Elefante, estava comemorando 200 anos.
Bosco, um radioamador que participa dos papos na freqüência da América fornecendo a previsão de tempo para os navegantes, nos levou para um city tour. Fomos inicialmente até Aldeia, a Petrópolis de Recife. Na volta visitamos o museu-oficina do ceramista Francisco Brennand, os bairros chiques Casa Forte e Casa Amarela, o popular Morro da Conceição, Boa Viagem, a mais bela praia urbana do Brasil, os belos casarões e sobrados do centro como o Mercado São José, Palácio das Princesas, a Casa da Cultura, e ainda várias das 40 pontes que integram a cidade.
Olinda, patrimônio natural e cultural da humanidade, não podia ficar de fora. O velejador Fábio do Tatuamunha, multichine 28' também projeto do Cabinho, logo se identificou com a gente e nos levou para uma volta por Olinda, encerrando o passeio com um jantar em sua bela casa recém construída na Ladeira da Sé. Do banheiro, sentado no "trono", através da parede envidraçada podemos observar o mesmo visual que se tem da famosa Igreja da Sé.
Fomos com o João até Caruaru, curtir sua tradicional feira. Não foi o que imaginávamos. Hoje o forte por lá é a sulanca, roupa de algodão barata que representa 90% dos negócios. Apesar do calor, valeu o passeio, pois subimos o Alto do Moura, considerado pela Unesco como o maior centro de arte figurativa das Américas e visitamos os Museus do Manoel Galdino e do Mestre Vitalino, tendo inclusive conversado com dois de seus filhos.
O show do Lenine no Teatro Guararapes mostrou que ele está cada vez melhor. Para nós, que acompanhamos sua carreira desde o início, foi um prazer ver engarrafamento no estacionamento e fila na bilheteria. No camarim, cenas de tietagem explícita e altos papos com Lula Queiroga e Alexandre Carneiro.
A turma de vela do Cabanga é muito animada e está sempre reunida no Palhoção. Fizemos muitos amigos e várias festas por lá, inclusive a de aniversário de 6 anos do MaraCatu, aos vinte dias de janeiro, dia de São Sebastião. Nossos agradecimentos a boa recepção do Cabanga, em especial ao Emílio que nos liberou de qualquer taxa de permanência.
Recebemos as visitas de Joana, Pablo e seu inseparável amigo Negão. Viramos a noite com eles no Recife Antigo e comemos, na Casa de Noca em Olinda, uma macaxeira com carne de sol e queijo de coalho de tirar o chapéu. Alexandre Seabra, nosso companheiro da FGV, aproveitou que estava a trabalho por aqui e curtiu com a gente o aniversário do Jan do Ausstiguer no Palhoção e um belo almoço no Mania de Comer, cuja especialidade é fava (Joao que não conhecia, quando chegou aquele prato com um feijaozão ficou procurando a fava, achando que era um tipo de carne). Júnior, irmão da Mara, também passou por aqui a trabalho e curtimos uma noite no Palhoção.
Ivan e Egle do Taai-Fung tiveram que adiar seu retorno para Recife, pois a mãe do Ivan ficou doente e acabou falecendo. João também decidiu retornar ao Rio para ver Isabela e familiares. Decidimos então aguardar o pessoal em Suape, no Cabo de Santo Agostinho, onde Percy e Zilda do Galileo já nos esperavam.
Saímos do Cabanga na maré cheia, aos vinte e nove dias de janeiro e apoitamos no Pernambuco Iate Clube-PIC, de onde saímos na manhã seguinte para Suape. O PIC fica próximo a Praça Marco Zero, no Recife Antigo. Dizem que aqui é o quilômetro zero da Transamazônica, concorrendo com Cabedelo onde tem até uma placa. Fomos almoçar no clube e encontramos o Manolo, comodoro e um dos organizadores da regata Recife-Noronha. No final da tarde ele nos levou para um passeio de catamarã pelos rios Capibaribe e Beberibe, que segundo ele "formam o Oceano Atlântico", contornamos a Ilha do Recife e o porto.
As sete da manhã seguimos viagem e depois de cinco horas a vela e motor, mais motor que vela, com vento sueste fraco e mar calmo chegamos no Porto de Suape. Não quisemos investir só com o desenho feito pelo Artur do Toatoa e após uma chamada pelo radio VHF ele mais o Rafael do Pez-Pallo e Percy nos encontraram pelo lado de dentro do recife próximo a barra sul. Antes desta barra ser aberta a dinamite, este era considerado o maior recife continuo das Américas - comprido, largo e reto como se feito com uma régua gigantesca. Nossa entrada pelo canal, que é complicado pois temos de passar colado ao recife e desviar de vários bancos de areia, com tantos guias a nos ajudar foi tranqüila até a ancoragem, com mais de dois metros de água embaixo da quilha, no canal entre as Ilhas Tatuoca e dos Franceses.
No Cabo de Santo Agostinho, seus moradores e os espanhóis já comemoraram os 500 anos do descobrimento do Brasil, pois segundo eles, o espanhol Vicente Yanez Pinzon chegou por aqui aos vinte e seis dias de janeiro, portanto um pouco antes de Cabral aterrar na foz do rio Caí, próximo a Porto Seguro. O lugar é lindo e nem nos importamos se o resto da flotilha demorar para chegar.
Exploramos o lugar com várias caminhadas. Subimos o Cabo de Santo Agostinho passando pela Vila de Nazaré com sua capela do século XVI e as ruínas do Convento Carmelita, seguimos até o farol onde conhecemos a única faroleira do Brasil, Dona Margarida. No caminho várias paradas para colher mangas e cajus. Na descida norte do cabo almoçamos na pequena e bela praia de Calheta e depois, uma cervejinha na praia de Gaibu.
Com uma caminhada de 7 km, contornamos a Ilha dos Franceses, chegando até o Porto. A ilha agora tem duna artificial, gerada pela dragagem do porto, onde será construída uma usina termo-elétrica. Dá pra notar o desequilíbrio gerado pela dragagem, abertura da barra sul e aterramento de uma grande área para construção de um hotel de luxo na praia de Suape.
Aproveitando a companhia do Percy e Zilda, a comedora de mangas, alugamos um bugre e fomos até Porto de Galinhas. É uma praia bonita, mas não mais do que Suape. A fama vem da exploração turística do lugar que hoje conta com inúmeras jangadas que vão até as piscinas naturais, um bar ao lado do outro, feirinha, ambulantes e outras coisas mais. No caminho passamos pelas praias de Cupe, muito bonita, e Muro Alto, onde estão construindo um hotel ainda maior que o de Suape. É o nordeste despontando para o turismo!
Subimos o Rio Massangana na Unidade Móvel, parando no Bar da Ostra que além das ostras frescas tem o bom papo do Sebastião (14 filhos, deve ser o poder afrodisíaco do que ele vende) que vai contando estórias enquanto abre e tempera pacientemente cada uma das 24 ostras degustadas. Seguimos até Porto Verde, um centro de eventos e uma marina que está sendo construída 2 horas rio acima. O passeio foi bem maior do que esperávamos e nossa gasolina acabou na volta. Se não fosse o Percy, estaríamos lá até agora tentando remar contra a maré e sendo comido pelos mosquitos. Felizmente tem várias mangueiras na beira do rio e não morreríamos de fome, pois pegávamos as mangas de dentro do bote.
Nos finais de semana, quando os velejadores locais chegavam, curtíamos o Bar do Biu na Ilha Tatuoca, ao sabor de "quebradinho de aratu de pedra" preparado pela Dos Reis com leite de coco seco ralado e espremido, servido em porcelana inglesa e acompanhado de caju com cachaça, ou vice e versa. Artur e Inez do Toatoa mais Siqueira e Janaina, a comedora de caranguejos, do Sea Queen estavam sempre presentes pois os barcos ficam aqui no verão.
A festa de aniversário do Helio, no décimo dia de fevereiro, foi no Bar do Biu. Teve fogueira na praia, uma cervejinha (plural de cerveja), quebradinho, pavê de chocolate e bolo de banana meio salgado, pois quando embarcávamos no bote, de banho tomado e bolsa cheia de guloseimas para a festa, caímos n'água. O prejuízo maior foi a máquina fotográfica da Mara que não gostou nem um pouco do banho salgado e se recusou terminantemente a funcionar.
O Percy matou a vontade de pescar e nos abasteceu a temporada toda com mero e robalo, que aqui se conhece por camorim. Um dos robalos foi degustado com vinho no Trend, um Lagoon 41 do Edson Moura e Teresa que moram em Recife e estavam de férias por aqui.
Finalmente quatro dias depois do aniversário chegam João, Egle e Ivan. Recebidos, mais Percy e Zilda, com um super almoço a bordo com direito a três tipos de sobremesas (a saber: pavê de chocolate gelado, bolo de banana (receita da Suzy) agora sem sal, e manjar de coco feito pela Zilda) agora a flotilha está completa: MaraCatu, Yahgan, Taai-Fung e Galileo que como nos Três Mosqueteiros agora somos quatro. Foi com prazer que repetimos quase todos os passeios.
A caminhada diária é até a praia do Paraíso, para telefonar e ver o pôr do sol. A praia, que na realidade é quase um costão de pedra, fica a oito minutos de bote, mais 2 Km de areia fofa quando a maré está alta e uma trilha sob umas mangueiras frondosas. Mas vale a pena pois o lugar realmente é um "paraíso". Numa das tardes que estávamos por lá, fomos convidados para um casamento de um nativo, que hoje mora em Londres, com uma inglesa. Com muito esforço por conta do vento forte conseguiram montar um altar no quiosque de um bar, estenderam um tapete vermelho e montaram a mesa com salgadinhos e um bolo de 3 andares. A noiva, Linda Filomena, de vestido curto, meias e sapatos brancos, com buque de rosas vermelhas; o noivo, cabelos e cavanhaque pintado de amarelo canário e sobrancelhas pretas vestia um fraque; 2 damas de honra e padre com ajudante. A missa teve tradução simultânea feita pelo noivo. Depois, além do choro dos casados, muito salgadinho, cerveja, vinho e bolo. Nós participamos de tudo, como convidados de honra, vestindo biquíni, camiseta e sandália havaiana.
O divertimento noturno é acompanhar pelo SSB a travessia do Atlântico, fora da época ideal, dos barcos Paratii, Hozhoni, Papa-Léguas e Bahia que vão participar da regata do descobrimento.
No sábado, além do espetáculo da lua cheia, assistimos do barco a uma bela queima de fogos feita pelo hotel da praia de Suape.
Aos vinte e um dias de fevereiro, seguindo o track registrado pelo GPS na entrada, deixamos Suape com destino a Maceió, nas Alagoas, onde estamos ancorados e começando a explorar a cidade.
Desculpem a mensagem tão grande. São dois meses de notícias. Depois tem mais.
Bons ventos, Mara & Helio & MaraCatu
Frase do Mês:
"Quando seu barco, há muito ancorado num porto,lhe dá a ilusão de ser uma casa...
é chegada a hora de navegar!
Preserve sua jornada no barco da alma
e sua própria alma peregrina,
custe o que custar."
Dom Helder Câmara.