Diário 11 - Chapada Diamantina
27/5/2000 a 22/6/2000
A velejada entre Ilhéus e Salvador prometia ser boa. Saímos
pela manhã com vento sul de 15 nós e ondas entre 1,5 e 2 metros, também de sul.
Só com a genoa fazíamos uma média de 6 nós. Ivan no Taai-Fung, com Tarcisio e Mariana de tripulantes nos acompanhavam. Na altura de
Itararé, 30 milhas ao norte, o vento foi rondando para nordeste e diminuindo até calmaria total com o mar
também baixando até parecer um lago. Conclusão, chegamos no Centro Náutico da Bahia as 5 horas da matina do dia 27 de maio, motorando.
Após uma média com pão e mortadela numa padaria na parte alta da cidade e um breve cochilo,
João do Yahgan, Egle e os três patetas (Zé Feliciano, Roberto e Manolo) chegam com malas e bagagens para nos encontrar e explorar a cidade. Passamos dois dias curtindo Salvador com eles. Os
três patetas ainda foram até Itaparica no Taai-Fung.
Deixamos os barcos no Aratu Iate Clube, preparamos mochilas e tênis de caminhada e pegamos o
ônibus para a Chapada Diamantina. A Susy do Samba que era a mais animada para a
excursão acabou não aparecendo (as más línguas dizem que foi o namorado dela que
não deixou).
A Chapada fica a 400 km de Salvador, bem no meio do sertão baiano. Este pedaço
mágico da Bahia possui belas formações geológicas que foram esculpidas ao longo de muito tempo pelo vento e pelas
águas, formando grutas, cachoeiras, morros e paredões de formas e cores variadas que
até parecem ter sido moldadas pelas mãos de um artesão gigante. Um rico manancial de
águas cristalinas nasce na Chapada, formado principalmente pelos rio Paraguaçu, que desemboca na Baia de Todos os Santos e rio de Contas que desemboca em
Itararé.
A
poética cidade de Lençóis se descortina em um dos contrafortes da Serra do Singorá, as margens do rio
Lençóis. A vila formou-se lá pelos idos de 1845 numa época em que a região prometia ser o Eldorado. Tombada pelo
patrimônio histórico, é considerada a capital do diamante e uma das maiores
referências entre as cidades baianas ligadas ao garimpo. Seus casarões testemunham uma
época de prosperidade. Um deles foi usado como sub-consulado francês, onde a aristocracia local negociava seus diamantes diretamente com a Europa. Foi
aí que o ônibus nos deixou as 5:30 da manha, depois de 6 horas numa estrada cheia de catabiu (como o nordestino chama buraco na estrada). Ouvimos algumas
reclamações do Zé que disse ter passado a noite sem dormir, deixamos as mochilas numa pousada e fomos ver a cidade acordar.
Na primeira manhã, contratamos um guia local e fomos conhecer as redondezas. O passeio
começou com uma caminhada de 3 km até o Ribeirão do Meio. Lá mergulhamos em sua
água cor de coca-cola, curtimos os desenhos que uma espuma branca forma na superfície
e escorregamos no grande lajedo. Na volta, atravessamos a cidade e seguimos para o outro lado mais 3 km chegando
até a Cachoeirinha. Mais um bom banho, agora em água cristalina. Na volta passamos pelo
Salão das Areias Coloridas e o Serrano. Roberto descobriu as maravilhas de uma câmara
digital, comprou um monte de disquetes e registrava tudo que passava na sua frente: gente, pedra, lagartixa, macaco. No final da tarde, depois de uma noite mal dormida no
ônibus e de ter caminhado uns 14 km, estávamos cansados e famintos. O almoço ajantarado nos deu forcas para curtir a cidade a noite, ajudados
é claro por uns Capetas (leia fórmula desta bebida energética na parte 2 do diário).
O segundo dia foi light. Alugamos uma van e
saímos logo cedo para cumprir um longo roteiro. Começamos pela Gruta da Lapa Doce, onde caminhamos 800 dos 3000 metros que a formam, apreciando as
formações de estalactites e estalagmites. No meio do caminho escutamos o silêncio e vimos a
escuridão total. Lembramos muito do Neto, primo da Mara e geólogo da USP, que sempre nos falava destas cavernas. Com ele
teríamos conhecido os outros 2200 metros desta gruta, fechados a visitação. Relaxamos um pouco na sombra de um majestoso umbuzeiro com 280 anos e seguimos para a Gruta da Pratinha onde nos sentimos no Caribe. Uma
água cristalina de tom azul turquesa sai da gruta formando um lago com fundo de areia branca.
Impossível não dar um mergulho. Aguardamos a hora certa e fomos até a Gruta Azul, onde entre junho e julho, um raio de sol ilumina a
água que, como o nome diz, é azul. Seguimos para o Rio Mucugezinho, que forma diversas cachoeiras e
poços e chegamos ao maior deles, o Poço do Diabo, que é ideal para a prática de rapel. No final do dia, escalamos o Morro do Pai
Inácio. Conta a lenda que um escravo fugindo de seus perseguidores saltou daqui usando um guarda-chuva como
Pára-quedas (dizem também que depois ele voltou e fugiu com a mulher do coronel que o perseguia). Do alto deste mirante natural, tem-se uma
visão de 360 graus da região e curtimos dai o pôr do sol. Sabe aquela expressão
"se sentir nas nuvens"? Deve ter sido criada aqui.
O terceiro dia, também terceiro dia de junho, amanheceu chuvoso. Aproveitamos para perambular pela cidade, mudando de lugar a cada estiagem ou caminhando de marquise em marquise. A noite comemoramos um ano de vida a bordo no MaraCatu.
Parabéns prá gente! Como o Ricardinho costuma dizer: Oh vidinha mais ou menos...
O trecho que melhor resume o espetáculo da Chapada Diamantina é a trilha que vai do Vale do
Capão, no povoado de Caeté-Açu até a cidade de Andaraí. São 60 km de paisagens deslumbrantes formada por vales,
capões (pequenos tufos de matas que normalmente aparecem entre os paredões e ao redor da umidade dos riachos e cachoeiras), canions,
paredões coloridos e amplos campos a altitudes que ultrapassam os mil metros. Como a
única forma de ver isto tudo é caminhando ou de helicóptero, contratamos um guia e uma mula para as bagagens e fizemos esta caminhada em 3 dias.
O caminho de Lençóis até Caeté-Açú foi feito numa camionete JPX traçado
(carro traçado é com tração nas 4 rodas). Victor, proprietário, guia, motorista e ex-skipper da escuna Smuggler em Angra dos Reis, ao descobrir que
éramos velejadores resolveu passar o dia conosco, seguindo por caminhos alternativos e mostrando paisagens pouco visitadas. Passamos pela Cachoeira do Pai
Inácio, na casa da Dona Afro que faz um delicioso doce de leite e experimentamos um pastel feito com a parte da jaca que fica entre os gomos, chamada por
lá de palmito de jaca. João passou o dia dizendo que estava doente. No inicio achamos que era golpe para ir no banco da frente do JPX,
único com estofamento, já que os outros dois eram de madeira e muito duros, montados lateralmente na
caçamba. A noite ficamos na aconchegante Pousada Candombá.
Acordamos bem cedo, tomamos um farto café da manha e nos despedimos do João
que resolveu não enfrentar os 60 km a pé. Parece que estava mesmo doente, ou amarelou.
Estávamos preocupados com o Zé. Será que o velho ia agüentar a caminhada? Na verdade achamos que todos se perguntavam intimamente se iriam
agüentar. Mas como disse o poeta, uma jornada de mil quilômetros começa com um passo.
O primeiro dia foi o mais puxado de todos. Fizemos 28 Km, incluindo ai um monte de subidas. A caminhada
começa tranqüila pelo Vale do Capão até o início da serra. Uma subida de duas horas nos leva aos Gerais do Vieira a mais de mil metros de altitude. No topo recuperamos o
fôlego na nascente do Rio Preto com uma vista panorâmica do Vale. Ai a coisa melhora e atravessamos o
platô que se estende por mais de 10 km, margeado por grandes rochedos de paredões
coloridos. Uma descida de 4 km com muita lama marca o fim dos Gerais e o inicio das
reclamações do Roberto que não gosta de andar na lama. Chegamos a uma antiga vila abandonada de onde
só restou uma igrejinha, conhecida como Ruinha. A partir dai mais uma hora e tal de subida
íngreme rumo ao Vale do Paty, um extenso cânion de rochas recortadas pelas águas
dos rios Paty e Cachoeirão. Do alto desta subida o ponto culminante da trilha em
matéria de beleza da paisagem. Já no fim da tarde chegamos a casa do Seu Wilson, um colono que recebe os peregrinos para pernoite incluindo uma super
refeição preparada por sua esposa Dona Maria e um bom banho gelado (Helio em vez de banho prefere uma cervejinha gelada na
água do riacho).
O segundo dia foi tranqüilo. Uma caminhada de 10 km morro abaixo onde todo santo ajuda e o diabo empurra. No caminho passamos por um casebre conhecido como Prefeitura, erguido na primeira metade do
século para servir de alojamento aos mercadores que comercializavam produtos entre
Lençóis e Andaraí. Hoje serve de alojamento para os caminhantes. O pernoite foi numa comunidade alternativa, que
não foi informada de nossa chegada. Estávamos famintos e não tinha comida. Ainda bem que o Victor tinha dado a dica para levarmos uns pacotes de
macarrão "para uma emergência". Acendemos o fogão a lenha, reunimos os legumes existentes na comunidade e Egle, Manolo e Mara
prepararam um macarrão a lá sopa de legumes, que encheu a barriga dos caminhantes e dos bichos grilo da comunidade.
O terceiro e último dia de caminhada começou com uma bela subida, conhecida como Ladeira do
Império, já na serra do Roncador. Uma subida puxada que ziguezagueia entre pedras.
Zé Feliciano chegou ao topo todo serelepe, mostrando a todos que apesar da enorme barriga ainda tem
fôlego. A parte final, embaixo de uma chuva fina, foi uma grande descida cheia de pedras soltas, com vista do Vale do
Paraguaçu e seus pântanos (conhecido como mini-pantanal). A chegada em Andaraí
foi comemorada com muita cerveja, caipirinha e um bom descanso na piscina da Pousada
Ecológica, as margens do rio Paraguaçu. A noite, no jantar provamos o tucunaré, peixe de
água doce muito apreciado na região.
A volta para Lençóis foi feita de kombi. No caminho visitamos o Poço Encantado com sua
água cristalina, 50 metros de profundidade e que fica dentro de uma imensa gruta de pedras brancas. Um raio de sol, que por conta das nuvens de chuva
não apareceu, tinge suas águas de azul turquesa. Passamos também em Xique-Xique do Igatu, uma cidade fantasma do
século passado, toda erguida com pedras. Ainda nesta noite pegamos o ônibus para Salvador e enfrentamos os 400 km de buracos novamente.
Recomendamos a Chapada Diamantina para todos, pois é inesquecível. A melhor
época para Visitá-la é de abril a julho e na baixa temporada (abril a meados de junho) o custo
é razoável. Senão vejamos (preços em R$ por pessoa):
- Ônibus Salvador-Lençóis 21,00
- Pousada em Lençóis a partir de 8,00 ao dia incluindo farto café da manhã. A maior parte das pousadas cobra 12,50
- Refeição a peso em Lençóis 8,00 o kg (existem bons PF's por 3,50)
- Guia para passeios locais 5,00 ao dia
- Passeio de van com 10 horas de duração, lanche e guia 15,00
- Entrada na Gruta da Lapa Doce 3,00 e na Pratinha 5,00
- Caminhada Caeté-Açu/Andaraí 220,00, incluindo translado de Lençóis ao Vale do
Capão, 4 pernoites, todas as refeições, guia, mula e seu condutor, translado Andarai-Lençois
com visita ao Poço Encantado e Xique-Xique do Igatu, num total de 5 dias.
E já que estamos falando de números, pra quem gosta, aqui vão as estatísticas
de um ano de vida bem vivida a bordo.
Navegamos 3.200 milhas (5.920 Km) das quais apenas 210 milhas em condições
ruins, o que não chega a 7%. Ancoramos em 42 locais e visitamos outros 32. A pior ancoragem foi em Baia Formosa na
Paraíba e a melhor, por ser um arquipélago a 70 Km da costa baiana, foi em Abrolhos. A barra mais simples de negociar foi a de Cabo Frio e a mais
difícil, exceto Comandatuba que não conseguimos, foi a Barra de São Miguel nas Alagoas. A melhor velejada foi
Maceió/Recife, a pior foi Ilhéus/Camamu. O recorde de 161 milhas em 24 horas foi de
Maceió para Salvador.
Navegamos 607 Hrs (media de 5.3 nos, ou a passo de cagado de uns 10 Km/h. Parece pouco, mas para um barco com 7 metros de linha
d'água e' um bom desempenho), sendo 350 Hrs (57%) a vela e 257 Hrs com vela e motor. Como navegamos o equivalente a 25 dias, confirmamos a
estatística de que mais de 90% do tempo se fica parado.
Queimamos 471 litros de diesel. Além das 257 Hrs motorando, usamos 107 Hrs para carga das baterias (uma hora a cada
três dias). O consumo se mantém em 1.3 litros de diesel/hora. Queimamos também
12 bujões de gás de cozinha (de 2Kg) e Helio e convidados consumiram **** latas de cerveja (Hi, estourou o contador de latinhas).
No MaraCatu substituímos a mangueira de alimentação de diesel, a ponteira do pau de spinaker, a
alça do burro na retranca e a chave comutadora das baterias; reparamos a bomba de
pressurização; trocamos a bateria do motor; costuramos o carrinho da esteira e do top da vela mestra; trocamos o cabo do enrrolador da genoa e mandamos o bote de inflar para reparos na fabrica em
São Paulo. Muito pouco para as milhas navegadas.
Mara se curou do braço destroncado em Vitória e até melhorou da enxaqueca. Helio acostumou-se a lambreta com pimenta e
não teve mais infecção intestinal, só umas gripesinhas. O Ministério da Saúde
avisa: vida com pouco estresse é bom pra saúde!
Helio, alem das compras do primeiro semestre substituiu a sandália de uso diário
e investiu em novo equipamento fotográfico (não computado nas despesas mensais). Mara, alem dos 2 vestidinhos, 2 camisetinhas e da saidinha de praia do primeiro semestre, comprou uma sandalhinha e mais 3 vestidinhos. Dos iates clubes e marinas que paramos, pagamos estadia em
Vitória, Ilhéus e Salvador (media de R$ 50,00/mes).
O gasto médio mensal de US$ 800,00 esta' exatamente dentro do planejado. O que mais pesa no
orçamento é alimentação (25%) e bar/restaurante (19%). As maiores despesas
além destas são com cerveja R$ 150, cigarro R$ 140, manutenção do barco R$ 100 e material
fotográfico R$ 60.
Desde que saímos do Rio recebemos muitas mensagens de apoio e carinho dos amigos. Muitos confessam estar com inveja,
cobiça?, do nosso jeito de viver a vida. Nossa lista contem mais de 80 endereços. Aqueles que nunca se
manifestaram, dêem um alo dizendo se querem continuar recebendo nosso diário. Queremos
também atualizar nossa lista, já que endereço na internet é tão volátil quanto dinheiro no bolso de marujo vagabundo perambulando pela costa deste
Brasilsão.
Bom, chega de números. Depois de um bom descanso e um fim de semana tranqüilo
no Aratu Iate Clube, nos despedimos dos três patetas que voltaram para o Rio acompanhados do Ivan, Egle e
João. Abastecemos o MaraCatu e fomos explorar o Rio Paraguaçu, agora desde sua foz