Diário 12 - Rio Paraguaçu
22/6/2000 a 26/6/2000
Alo pacientes leitores deste diário, saímos do ar (mas não
do mar) por algum tempo mas agora estamos de volta. Fomos convidados pelo Jadir do Normandie, aquele da "casa de campo" do MaraCatu (ver
diário 4) para ajudá-lo a levar a escuna Valtur Bahia, um tradicional saveiro baiano de 72
pés, de Salvador para a Sicília na Itália. Após dois minutos e meio de reflexão
(como é bom ser dono do nosso tempo) resolvemos aceitar o convite e participar da aventura, que prometemos contar depois. Mas agora vamos
começar de onde paramos, a festa de São João no rio Paraguaçu.
O
Paraguaçu nasce na Chapada Diamantina no município de Barra da Estiva, corta o
Recôncavo e 550 Km depois desemboca na baia de Todos os Santos formando o vale de mesmo nome. Originalmente era habitado pelos
índios tupinambás que depois de muita briga foram expulsos pelos portugueses que sabiamente escolheram a
região para o plantio de cana de açúcar. Logo perceberam que o rio fazia a ligação
entre o Recôncavo e o Sertão, facilitando o escoamento das riquezas produzidas e o
comércio trouxe o rápido progresso para toda a região.
Velejando com 10 nós de vento favorável, muito sol e mar calmo pela baia de Todos os Santos
seguíamos para a foz do rio e observávamos que muitos barcos faziam o mesmo, pois no dia seguinte, 23 de junho, era
véspera do dia de São João e ninguém queria perder a tradicional festa na cidade de Maragojipe, 12 milhas rio acima.
Logo na primeira curva do rio, ficamos lado a lado do veleiro alemão Jambo e seguimos juntos observando a beleza dos
manguezais, nascentes d'água, edificações seculares como igrejas, fortes, engenhos e vilas existentes em seu curso e cruzando com os tradicionais saveiros de carga que levam principalmente farinha de mandioca e carne de fumeiro (porco defumado) e velejam de forma elegante.
Chegamos ao entardecer e depois de três tentativas, finalmente conseguimos fazer a
âncora unhar direito, pois a correnteza é forte e o fundo é duro. Decidimos explorar a cidade no dia seguinte, permanecendo a bordo curtindo os
forrós, xotes e baiões cantados por Gil no Cd da trilha do filme Eu, Tu, Eles.
Amanheceu com muito vento e chuva e não conseguimos nem botar a cara no cockpit. No final da tarde, numa
rápida estiada vestimos roupa de tempo e desembarcamos, deixando o bote amarrado no
píer de cimento com uma âncora pela popa.
A famosa festa foi uma decepção. Tínhamos feito apenas um lanche na hora do
almoço para curtir as deliciosas comidas a base de milho, tradição da época de
São João, acompanhadas de um bom quentão. Não conseguimos comer nem milho cozido e
quentão ninguém sabia o que era. Após encher a barriga com uma pizza tipo "pizza de padaria", aguardamos umas duas horas pelo conjunto que animaria a festa com
música ao vivo. Outra decepção, em vez do tradicional forró, ouvimos Axé
Music. Frustrados, decidimos voltar para o barco.
Quando chegamos no píer, percebemos que estava acontecendo alguma coisa, pois tinha uma rodinha de pessoas dando pitaco em pelo menos
três línguas diferentes. Uns franceses tinham deixado o bote ao lado do nosso com o cabo de
amarração muito curto. Eles não sabiam que a maré por aqui varia perto de 2 metros e quando ela vazou, o bote deles ficou pendurado e subiu por cima do nosso.
Já' tinha um cara dentro d'água lutando contra a correnteza e tentando tirar o motor de popa deles que estava dentro da Unidade
Móvel. Ele conseguiu realizar a tarefa mas virou nosso bote com motor e tudo. Felizmente o valente Suzuki
não bebeu água e pegou de primeira.
Apesar do
recém inaugurado balizamento do rio até Cachoeira, fomos conhecê-la espremidos num
táxi lotação seguindo 22 km rio acima. A cidade teve uma importância muito grande, pois era ali o porto na
época do escoamento das riquezas e além do comércio teve uma participação política
de peso na época da independência do Brasil e acabou conhecida como "Cidade Heróica".
Quitéria, a mulher soldado, e Ana Nery, a enfermeira do Brasil, são filhas de Cachoeira. Recebeu visitas ilustres como D.Pedro, o I e o II, Princesa Isabel e o Conde
D'Eu. Foi sede do Governo da Bahia por duas vezes: uma no início das lutas pela
independência (1822) e outra durante a Revolta da Sabinada (1837). Isto trouxe para a cidade valores
notáveis nas artes, arquitetura civil e religiosa, monumentos impregnados de
história. Hoje ainda retrata esse passado dinâmico e desde 1971 é "Cidade Monumento
Histórico". A ponte D.Pedro, uma imponente estrutura metálica importada da Inglaterra a liga a
São Felix, na outra margem. Rio acima fica a represa Pedra do Cavalo, construída
para regular a vazão das águas, evitando inundações em todo o vale na época
das chuvas.
Passeamos bastante pela cidade até que bateu a fome em Mara e a sede de cerveja em Helio. Escolhemos um pequeno restaurante com cara de ter uma boa comida caseira. Acertamos em cheio! Experimentamos um prato
típico preparado com folhas de mandioca, carne de boi e porco, chamado maniçoba. Este prato leva
três dias para ser feito pois a folha da mandioca é muito tóxica.
O papo rolou solto durante o almoço com o casal Ed e Graça, proprietários
do restaurante, e um amigo que morava ao lado, num autêntico sobrado. Ele fez questão
de nos levar para conhecer o sobrado, a família e uma relíquia que sua tia cuida
há mais de 40 anos: a imagem de uma santa que só sai de casa no dia da procissão, retornando logo
após para seu recanto. Graça nos convenceu a ficar na cidade até o final da tarde para assistirmos ao desfile em
comemoração a emancipação da cidade. Valeu a pena. Grupos de estudantes fantasiados retratando parte da
história do Brasil e da cidade desfilavam ao som de duas fanfarras.
De volta a Maragojipe fomos
explorá-la, acompanhados de Bernard e Mônica do Jambo e do João e Bardu do Justa Causa. O nome Maragojipe grafado como Marau-Gy-Pe seria rio dos Marahu ou rio dos
maracujás, Marag-Jyp seria rio de mosquitos. A cidade fundada em 1556 também e'
histórica e possui um dos mais importantes manguezais do Estado, mas hoje está esquecida e parou no tempo. Acumula um grande
número de aposentados, pois os jovens saem para estudar fora. Conversando com os locais eles a definem como a cidade do
"já teve", ou seja, já teve capitania dos portos, já teve ferryboat para Salvador,
já teve várias olarias, já teve fábrica de charutos Suerdieck e outras coisas mais. Hoje vive mais do folclore e festas religiosas. A famosa regata Aratu-Maragojipe coincide com a festa do padroeiro,
São Bartolomeu, festejado durante todo o mês de agosto.
Após as festas de São João, resolvemos descer lentamente o Rio Paraguaçu, explorando suas curvas e seus encantos. Mas disso falaremos depois. Atendendo a
sugestão de alguns atentos leitores, daqui pra frente diminuiremos o tamanho e aumentaremos o numero de vezes que mandaremos nosso
diário.
Curiosidade do mês: as Kombis de lotação que no Rio são chamadas de vans, ou peruas em
São Paulo, aqui em Salvador tem o pomposo nome de "Subsistema Especial de Transporte Complementar".