Diário 15 - Itacaré
18/01/2001 a 20/02/2001
Aos 18 dias de janeiro, lá pelas 15 horas, o MaraCatu largou as amarras no Aratu Iate Clube e rumamos para Itacaré. Tínhamos 100 milhas pela frente e pretendíamos chegar próximo das 11 horas do dia seguinte na barra do Rio de Contas, com a maré enchendo. A velejada até lá foi tranqüila, com um nordeste no ponto. O Mantra nos acompanhava e estava florido. Ângela do Caliel, acompanhada das duas filhas e Tereza, filha do Helinho, estavam a bordo. No través da Ponta do Mutá, Antoneto do Blows juntou-se a flotilha. Chegamos na barra um pouco antes do horário previsto e um tanto apreensivos, pois toda barra sem carta de detalhe é sempre uma "barra". Felizmente encontramos um barco local que saia para pescar e prontamente fez meia volta e nos mostrou o caminho. A barra é curta (menos de meia milha) e reta, facilmente negociável principalmente em dia de calmaria.
Ao ancorarmos em Itacaré levamos um susto. Parecia que estávamos chegando em "casa", na região de Angra dos Reis, ou em qualquer ponto do litoral norte de São Paulo. Aqui, por algum capricho da Mãe Natureza, existe uma pequena Serra Grande - menos de 22 Km - que se estende até o estuário do Rio de Contas, aquele onde já nos banhamos 400 quilômetros sertão adentro na Chapada Diamantina. As montanhas e a Mata Atlântica se juntam ao mar formando pequenas enseadas arrodeadas de muito verde. O clima, o mar quente e a água de coco gelada nos lembravam que ainda estávamos na Bahia.
Depois de saborear um peixe fresco a bordo, oferta do nosso guia na entrada da barra, e relaxar um pouco, fomos ver o pôr do sol na Ponta do Xaréu. Além do espetáculo da natureza fomos brindados com uma apresentação de uma capoeira autêntica, tradição domingueira.
Junto com os últimos raios de sol apareceram uns vendedores uniformizados, convidando compradores em potencial para passar um dia no Itacaré Eco-Parque, um complexo em final de construção na Praia de São José, 2 km ao sul, composto por praias, trilhas, cachoeiras, cavalgadas, Resort e flats com serviços. Aceitamos de imediato o convite e no dia seguinte um Land Rover nos aguardava logo cedo. Antes de aproveitar as maravilhas e mordomias do lugar, tivemos que driblar os corretores que tentavam nos convencer a comprar o direito de uso de um dos flats por uma semana/ano, ao longo de 30 anos. Helio quase foi pescado pelo papo do corretor. Realmente o lugar é lindo, e para famílias que habitualmente passam férias em resorts esta pode ser uma boa opção.
Quando retornamos no fim da tarde, encontramos mais um veleiro no ancoradouro. Nosso amigo Bereco, aquele que adora uma Heineken, estreava o Meu Velho, um Cabinho multichine 37', num primeiro cruzeiro depois de mais de 10 anos de construção. Com ele estava o Mousinho, um cabra da peste valente bebedor de cerveja que logo se torna o parceiro do Helio. Foi um páreo duro. Mousinho é daqueles que quando acorda com maremoto (os grandes bebedores não tem ressaca) toma logo uma lapada de cachaça para avisar ao fígado que não está para brincadeiras.
Era dia de São Sebastião e o sétimo aniversário do MaraCatu, mais uma vez comemorado em grande estilo - éramos treze a bordo! Aproveitando a orientação do Antoneto, que mora a bordo no Aratu, é artista plástico e mestre cuca nas horas vagas, Mara preparou um fettuccine grano duro com molho de camarões pistola frescos, levemente refogados no azeite com muuuito alho e muuuita salsa picada. A sobremesa foi improvisada pela tripulação feminina do Mantra que inventou uma receita de bolo de chocolate a base de biscoito e demais ingredientes achados a bordo e, na falta de uma forma, assado numa panela. Barco de homem solteiro, sabem como é, falta tudo na cozinha...
Aproveitamos que a flotilha estava grande para alugar um barco local e subir o Rio de Contas. Inicialmente acertamos tudo com um negão enorme e ironicamente conhecido por Neblina que prometeu levar todos nós (éramos 11) em sua canoa a remo. O medo dos Hélios de molhar os equipamentos fotográficos e o fato do Neblina se recusar a acordar cedo para o passeio ("cedo não, só acordo depois das dez"), nos fez mudar de idéia e acabamos indo na traineira do Carlão, dono da Cabana Maré Alta. Subimos o rio até o início da trilha para a cachoeira do Rio do Engenho ou do Cleandro. Depois de uma caminhada de 20 minutos, chegamos a uma queda d'água com 15 metros de altura em três níveis. No barzinho ao pé da cachoeira, Helinho continuou o treinamento da Mara na arte de comer guaiamum. Aluna aplicada, já traça os bichos na metade da velocidade e quantidade do mestre!
Itacaré e' um ótimo lugar para os que gostam de bater pernas e, como fazemos parte deste grupo, nossa primeira caminhada foi seguindo pelo Caminho das Praias - uma estrada calçada que parte da praça central, passa pelo bairro da Pituba e leva as praias ditas urbanas. A primeira delas, a do Resende, é totalmente deserta e ideal para relaxar na sombra de um coqueiro. A Tiririca é a preferida dos surfistas e conta com uma biquinha de água doce, barracas e pousadas. A praia da Costa é tão pequena que pode passar despercebida. A da Ribeira possui riacho, piscina natural, bica de água doce, varias barracas e é o território do pagode e do axé, sendo a preferida dos farofeiros. É aí que nasce a trilha para a Prainhas (que apesar de única foi nomeada no plural). Caminhando 40 minutos pela mata, com uma paradinha para uma refrescada numa pequena cascata, chegamos a uma das mais belas praias da região.
Aos poucos a flotilha foi diminuindo e ficamos apenas nós e Helinho. Decidimos então nos concentrar nos levantamentos para o roteiro. Fomos bater um papo com o Guto, da Itacaré Eco-Turismo. Recebemos todo o apoio desta agência, que "de grátis" nos levou para todos os cantos.
Começamos conhecendo as praias mais afastadas que ficam dentro de poucas e grandes fazendas cacaueiras e felizmente são protegidas por seus proprietários, que barram a entrada de carros e as mantém limpas. O acesso é sempre por trilhas ou estradas de barro que partem da rodovia Ilhéus - Itacaré. Esta é uma sinuosa estrada-parque (BA-001) que possui passarela suspensa nas árvores para o trânsito dos sagüis e túneis para os guaiamuns e outros bichos. A duvida é se eles foram treinados a transitarem somente nestas passagens.
A cada praia visitada ficávamos em dúvida de qual seria a mais bonita. Impossível compará-las. As três perolas, Jeribucacu, Engenhoca e Hawaizinho são preservadas, emolduradas por coqueiros e Mata Atlântica, delimitadas por rochedos e cortadas por riachos. Camboinhas, Itacarezinho e Patizeiro são extensas e possuem características semelhantes as praias nordestinas - aqueles praiões baixos, de areia branca com um coqueiral a perder de vista. Ainda demos uma esticada até a cachoeira de Tijuipe ou do Carioca: a água cai de uma altura de quatro metros formando, em seus quinze metros de largura, um poço fundo bom para banho e mergulhos.
Mas tem mais, vale o esforço ir a cachoeira de Pancada Grande. Meia hora de lancha rio acima e mais uma caminhada de 40 minutos. É a maior queda d'água da região com seus 40 metros e parte da trilha é por um antigo caminho de pedras a sombra dos cacaueiros. O caminho lembra, exceto pelos cacaueiros, a Trilha do Ouro que nasce na Serra da Bocaina e desemboca em Mambucaba.
Aos dez dias de fevereiro, Helio, festeiro como ele só, festeja mais um aniversário. Paulo e Luiza da Cabana Axé na praia da Concha tinham nos adotado e faziam questão de preparar um peixe na brasa em sua futurística churrasqueira Apolo XI. A cabana era o nosso escritório em terra - ali tomávamos banho; abastecíamos o MaraCatu com água; comíamos guaimuns cevados; Helio brincava de jogar capoeira; recarregávamos os lepitopis e trabalhávamos no roteiro.
A chegada de dois veleiros amigos, o Kailua do Intrieri e Denise, que moram a bordo no Aratu, e o Taigun do Jurgan, aquele que nos deu o maior apoio em Cabrália, animaram ainda mais a festa. A celebração começou com uma sirizada (especialidade do Intrieri), robalo assado na Apolo XI enrolado em folha da bananeira (especialidade do Paulo), torta alemã (especialidade da Mara), tudo regado a muita cerveja Pilsen Extra e por uma cachaça envelhecida em barril de carvalho da reserva especial do Kailua (especialidade do Helio, a cachaça era um dourado néctar dos deuses).
Como João e Ivan perceberam que não estávamos a fim de sair de Itacaré, resolveram abreviar a estada em Camamu e vieram nos encontrar. Eles estavam apreensivos quanto a entrada na barra, mas Mara, para tranqüilizá-los, prometeu buscá-los barra a fora. Para cumprir o combinado, enviou os Hélios na Unidade Móvel. Foi uma mini-aventura... Mar um pouco agitado, muita água entrando no bote, VHF portátil embrulhado num saco "plástico" e os dois tentando alcançar o Yahgan. João, que não enxerga direito, não os viu até que finalmente foi atropelado pelos dois. Já a bordo do Yahgan as coisas acalmaram e a entrada na barra com a maré quase no estofo da baixa foi tranqüila, apesar da pouca água embaixo da quilha.
Mara, organizadora como ela só, fez para os chegantes uma lista de atividades tão intensa que se tornou incumprível. Foi um prazer repetir quase todos os passeios. Um dia, voltando novamente da cachoeira do Cleandro tivemos duas surpresas: a primeira foi ver nosso amigo Patrick do Caipiruja ancorado ao nosso lado e a outra, o Yahgan cercado por uma ilha de baronesas. Aliás, este privilegio não foi só do Yahgan. Durante os 33 dias de permanência em Itacaré, todos os veleiros que passaram por lá receberam a visita das baronesas, exceção feita apenas ao MaraCatu. As baronesas, ou aguapés, desciam o rio e ficavam passeando na barra ao sabor das correntes, até ficarem presas na praia ou em algum barco ancorado, formando verdadeiras ilhas flutuantes. Para retirá-las muito esforço com os botes e, as vezes, era necessário até o uso de facão.
Depois de um cochilo a tarde, ouvindo o vento inventar sons nos estais, é hora de experimentar a noite Itacareense, que só esquenta mesmo depois da meia noite. Começamos jantando uma deliciosa pizza de gorgonzola com maçã verde na pizzaria A Boca de Forno no bem transado Beco das Flores. Depois, uma esticada ao Jahmeicafé na orla, para escutar um pouco de reggae regado a cerveja a -5 graus e por fim o famoso forró com muita Catuaba Selvagem. A Catuaba, feita com uma planta de mesmo nome, é a bebida oficial da vila e dizem ser afrodisíaca. O forró, ao som da banda local Arrankabaço, é dançado misturando os volteios da dança de salão com o bate coxa do forró tradicional.
Num fim de tarde de um fim de semana Helio levou os filhos do Paulo para assistir a O Maskara no único cinema da vila. O cinema, sui generis, é do tipo tomara que não chova, montado por um alemão num velho casarão sem teto. Na saída, dava para ver a alegria dos dois. A surpresa foi saber que eles já tinham assistido o filme umas oito vezes.
Ai chegou o aniversario do Helinho, outra festa. Desta vez, peixada de robalo fresco a moda paraibana (especialidade do aniversariante), preparada pra variar na Cabana Axé. De sobremesa duas tortas alemãs preparadas pela Mara (Helio reclama que no dele só teve uma, e bem menor). Quem fez mais sucesso na festa foi o argentino tripulante do Caipiruja, que era a cara do Maradona e obviamente foi apresentado como tal. Teve fila para autógrafo e fotos. Difícil foi convencê-lo a bater uma bolinha.
Isso aqui, apesar de não ter frevo, estava começando a ferver por conta do carnaval. Vamos embora explorar a grande baia de Camamu, 27 milhas aqui pertinho na direção norte. Joseph Conrad diz que "a despedida é distintamente uma cerimônia da navegação". Na Cabana Axé, lágrimas nos olhos de todos. Na saída da barra, lágrimas no MaraCatu. Além dos amigos que sempre deixamos em nossa esteira, esta era a primeira vez que MaraCatu, Yahgan e Taai-Fung seguiam rumos contrários. Acompanhamos suas velas até sumirem no horizonte... e ainda tinha Patrick, nosso companheiro de tantos anos em Angra que retornava para a França. Quando Será que nos veremos novamente?
Bons ventos Yahgan, Taai-Fung e Caipiruja.
Bons ventos para você também querido(a) leitor(a).
Mara e Helio a bordo do MaraCatu.
-= Seção Nostalgia =-
No ano em que Helio nasceu a Revista O Cruzeiro mostrou o plano 50 anos em 5 do Juscelino Kubitschek na capital federal, o Rio de Janeiro; o Repórter Esso mostrou os Russos lançando ao espaço o Sputnik; no cabelo use Gumex, no carnaval lança-perfume Rodouro; a camisa era Volta ao Mundo; o cinema era Novo; o avião era o Constellacion da Panair; o cigarro era Continental, sem filtro; os brotinhos de rabo-de-cavalo tomavam Grapette e andavam nas garupas das Lambretas; o programa Balança Mas Não Cai da Radio Nacional era sob o patrocínio de Eucalol, o das estampas; tinha também as Pílulas de Vida do Dr. Ross e por fim o long play era de dez polegadas e só cabia 8 músicas.
Que ano foi este? Resposta para o e-mail maracatu@unisys.com.br (dados baseados no livro de Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 - O ano que não devia terminar).