Diário 16 - Camamu
21/02/2001 a 16/03/2001
A baia de Camamu é a terceira maior do Brasil, ficando atrás (não sabemos se em tamanho ou em volume d’água) da baia de Todos os Santos e da Guanabara. Os baianos a chamam de Polinésia brasileira. Já tinham nos dito que Camamu no verão é mágico, mas ainda não tínhamos conferido. Você se lembra, já estivemos por aqui (veja a parte 3 do diário) em agosto de 1999 e agora, fevereiro de 2001, dá para perceber a diferença desde a entrada da barra, principalmente pela cor da água. No inverno, ela é turva devido as chuvas e agora transparente.
Logo após ancorarmos no Campinho desembarcamos para rever os amigos. Fomos correndo na Pousada Lótus da Soninha, depois foi a vez das três figurinhas Onilha, Aurora e Aidil e acabamos na Cabana da Ponte do Mário e Teresinha, onde sempre nos sentimos em casa.
Ancoragem vazia mas por pouco tempo, pois no final da semana começava o Carnaval e muitos velejadores baianos trocam, sem pestanejar, os trios elétricos da cidade pelo paraíso. Dito e feito, já na sexta eles começaram a chegar. No domingo contamos mais de 20 barcos no ancoradouro. Reinava o clima de festa, com Mara aguardando ansiosamente a chegada do seu filho Fernando.
Apesar de estarmos na Bahia, nem sinal do famoso carnaval baiano. A única coisa que nos lembrava das folias de Momo era a musica ambiente: o Tigrão e o Tapinha ecoavam de todas as caixas de som irritando os tímpanos de qualquer cristão de bom gosto. A noite ouvíamos ao longe o único vestígio de carnaval na redondeza, que acontecia na outra margem do rio, na vila da Ilha Grande. Um dia juntamos uma turma e fomos todos no MaraCatu até lá para ver como era.
Foliões precoces, chegamos no fim da tarde, e obviamente, ainda não tinha nada acontecendo. Depois de perambular pela vila ancoramos numa barraca da praça para molhar a goela. Ficamos intrigados com a especialidade local, o mocofato. Ao saber que era uma comida com feijão, Hélio, feijão positivo como ele só, logo se interessou e pediu um. O tal mocofato é de fato uma mistura de feijão, mocotó e fato (nome popular dos intestinos de qualquer animal). Dá para imaginar o aspecto do prato e poucos se aventuraram a provar. Logo depois arrumamos a companhia de um mecânico local, forte apesar da barriga, careca e coroa, bêbado e suado. A todo instante abraçava e levantava Hélio do chão. Lá pelas 10 da noite, muito antes da festa começar, para irritação do Hélio, a turma começou a bocejar e encerramos nossa participação no carnaval, voltando para a pacata ancoragem do Campinho.
Fomos caminhando a Barra Grande e até o farolete da Ponta do Mutá. A volta foi de carona num barco misturado a mudança que ele transportava. Fomos também no MaraCatu passar o dia na Ilha da Pedra Furada, que como o nome diz, possui espalhada pela praia zilhões de pedrinhas com um furinho redondo no centro.
Nos finais de tarde nos reuníamos na Cabana da Ponte e matávamos a sede, a fome e a gula com as delicias da Teresinha. O festival de frutos do mar preparado pela Soninha na Pousada Lótus, reuniu numa tarde chuvosa os navegantes presentes. A visita as 3 velhinhas também era constante e cada fez voltávamos com o bote quase afundando de tantas manga, abacate, cajarana, araçá, coco, ovo caipira e muito carinho.
Findo o carnaval todos voltam ao trabalho e decidimos fazer o mesmo. Passamos alguns dias com o escritório montado na Cabana da Ponte, onde os Hélios trabalhavam no texto do roteiro, Mara preparava os waypoints e rotas e Fernando os croquis.
Aproveitamos também para visitar Cajaíba do Sul, a cidade estaleiro. Levamos os barcos até onde a profundidade permitia, próximo a ilha Pequena, e o resto fomos com os botes de apoio. A escuna Valtur Bahia que nos levou até a Itália foi construída lá e conversamos bastante com Seu Zelito, o mestre carpinteiro responsável pela obra. Foi aí que ficamos sabendo da sua preocupação durante nossa travessia. Quando a escuna foi comprada, seu esqueleto já estava pronto e como o italiano queria uma cabine maior que a de projeto, mandou cortar a superestrutura de convés para aumentá-la.
Recebemos a visita do Ernani e Denise, da Revista Náutica, que estavam descendo na lancha catamarã Pense Leve. Satisfeitos com a nossa colaboração para a revista, elogiaram o material sobre Itararé, que por sinal está publicado na edição numero 153 de maio de 2001, ainda nas bancas.
Mudamos nossa ancoragem para um pequeno espaço de água existente entre o Sapinho e a ilha do Goió. Depois de livrar um banco de areia na entrada jogamos ferro num lugar estreito, mas profundo e praticamente protegido de todos os ventos. Como nem tudo é perfeito, a correnteza é de lascar. A especialidade no Sapinho é lagosta, mantida viva em manzuás dentro do rio, e guaiamuns gigantes cevados com o coco do dendê. Estamos a mais de uma semana só comendo frutos do mar e Mara, aplicada como ela só, já acompanha Helinho na quantidade de guaimuns ingeridos, só não consegue comê-los, ainda, na mesma velocidade.
Agora o escritório foi montado no bar do Edilson e Genica. Os lepitopis chamavam tanto a atenção que um dia os Hélios resolveram, num fim de tarde, dar aula de computador para a gurizada local. Foi o maior sucesso. É incrível como esta turma, depois de vencido o receio inicial de pegar no "rato", fez desenhos incríveis no Paint - barcos, campo de futebol e até o símbolo da Globo! Te cuida Hans Donner.
Seguimos com os botes de borracha por mais de 5 milhas até o rio Patura, inicio de uma trilha que nos leva ao pé do morro de Taipus onde 51 metros acima tem o farol. Valeu a pena o desconforto na Unidade Móvel sob um sol de rachar coco. Do farol vimos a imensidão do mar por fora da península de Maraú, uma lagoa de águas azuis conhecida por, adivinha?, Lagoa Azul, uma outra maior chamada Cassange e a beleza da baia de Camamu. No retorno aproveitamos para conhecer a vila de Taipus de Dentro. Como sempre, no primeiro bar que entramos, fizemos amizade de imediato e ganhamos fruta pão, uma delicia que pode ser saboreada frita como batata ou cozida como inhame. Ainda não experimentamos assada inteira no forno com muita manteiga.
Ancoradouro do Goió explorado, fotografado, batimetria executada, croqui de entrada esboçado e amizades seladas, seguimos viagem para as ilhas, 7 milhas baia a dentro, acompanhados do Mantra e do Blows do Antoneto que acabara de chegar de Salvador.
Ancoramos a sudoeste da ilha dos Tubarões, tendo, com a maré enchendo, a ilha dos Tatus na proa (parte da frente do barco) e a Germana por bombordo (lado esquerdo do barco, com você olhando pra proa). Os únicos habitantes são Elísio, sua mulher Leda e os 5 filhos. Não faltavam bom papo, frutas de varias espécies, caranguejo a dar com o pau (já que era época da andada), feijão e outras iguarias preparadas pela Leda no fogão a lenha. A noite papeávamos na varanda, iluminados pela lamparina de óleo de dendê enquanto bebericávamos uma cachacinha pois a cerveja andava escassa. Numa das noites tomamos sem sentir 2 garrafas de Terra Brazilis, presente do Paulo da Cabana Axé por ocasião dos aniversários dos Helios. Os papos invariavelmente descambavam para lobisomem, caipora, biatatá e até sereia (que Helinho jura de pés juntos já ter visto).
Elísio trabalha de sol a sol e uma das atividades é a produção artesanal de azeite de dendê, que ele fez questão de nos mostrar. Depois de subir nos dendezeiros e colher uma quantidade razoável de cachos do fruto, debulhá-los e cozinhá-los por toda uma noite num tonel de 200 litros, começa no dia seguinte a produção do óleo. Os frutos, ainda quentes, são colocados num espécie de cocho circular feito de pedras onde um burro é atrelado a um rodão de madeira bem pesado e revestido com folha de cobre que fica pisando o dendê até a polpa soltar do caroço. A cada 5 voltas do rodão, Elísio revirava os cocos com uma enxada e recomeçava a festa de tocar o burro que só andava se houvesse alguém em sua cola. Depois essa maçaroca foi passada para um tanque cheio de água do mar onde a polpa vai soltando o óleo que por ser mais denso bóia. Por fim este óleo voltava para o tonel e após fervido estava pronto para o consumo. Nada muito asséptico, mas dava gosto de ver a cara do Elísio, depois dessa trabalheira toda, exibindo as duas latas de 20 litros contendo um azeite fino e brilhante.
Quem já fez um cruzeiro longo há de concordar. O bote de apoio é nossa pick-up de carga. Com ele abastecemos com bujões os tanques de água e diesel, transportamos os mantimentos, outra viagem pra trazer a cerveja, largamos e recolhemos a ancora de popa, fazemos levantamentos de barras e rios e é claro exploramos em volta da ancoragem. Viva a Unidade Móvel com o possante Suzuki de 4Hp. Um dos passeios nas ilhas (como passamos a chamar esta ancoragem) era tomar uma gelada no bar do Boboco e sua Santa mulher em Tanques, uma vila a 20 minutos dos Tubarões, onde eles gentilmente nos cediam o celular rural para ligações a cobrar.
Numa das ligadas do motor do MaraCatu para recarga das baterias, o famigerado vazamento de diesel, que já nos acompanhava de longas datas, se tornou inaceitável. O parafuso usado para tirar o ar do sistema espanou a rosca no filtro de diesel. Um bom lugar para ficar sem motor: boa ancoragem, uma cacimba de água cristalina para o banho diário, comida a vontade... Mas como pretendemos subir o rio, pelo menos até a cidade de Maraú, vamos precisar bastante do "vento de porão". A solução é Hélio acordar de madrugada (sob protestos, já que ele é adepto da filosofia do Neblina - cedo não, só acordo depois das 8!) pegar um toque-toque até a cidade de Camamu e com um torneiro abrir uma rosca para um parafuso mais grosso.
Motor funcionando, ancora em cima, rumo para Barcelos do Sul, outra vila aqui no continente depois de contornada a ilha Germana. Oops, este diário já está muito grande e você deve ter mais o que fazer além de viajar conosco. Depois a gente conta como foi a subida do rio.
Bons ventos,
Mara, Hélio e MaraCatu.