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Versão da Catarina
Ao acordar em Salvador, no dia seguinte ao da nossa chegada, com o Luthier atracado no Terminal Náutico da Bahia, tive duas primeiras impressões: a maior luminosidade do local, (pudera, estamos andando atrás do sol!), e sua riqueza histórica, proporcionada pelas construções centenárias, encravadas no morro, e pelo Forte de São Marcelo.
Quando atracamos em qualquer porto, depois de uma viagem, o combinado é tirar o dia de folga, para relaxar e comemorar; no dia seguinte é que vamos pensar em tirar o sal do convés, e colocar as coisas no lugar.
Então, fomos ao Mercado Modelo, que fica em frente ao TENAB, para passear. Almoçamos no segundo andar do prédio, com direito à vista da Bahia de Todos os Santos, ao mar, nos seus vários tons de verde, ao movimento das embarcações, apreciando um prato regado à pimenta, azeite doce, e farofa de mandioca.
Depois, fomos andar pela cidade, então, outra sensação: a de perfume no ar, de incenso, misturado ao de azeite de dendê, ao das frutas nas bancas, do jenipapo no ponto para o licor, de bolo assando nos fornos, de rosas e outras variedades de flores, vendidas em barracas, e lançadas em oferenda por mulheres, na ponta do cais.
Não que a cidade seja um primor de limpeza, não é, há muitos casarões abandonados, aos fins de semana há lixo de montão, não recolhido, e por aí vai, mas acho o vento constante, que sopra por aqui, faz prevalecer o perfume local, das frutas, flores e alimentos.
No TENAB, atracamos ao lado de um barco suíço, e de frente para um Catamarã, sul- africano. Ambos estavam em Búzios, na mesma época que nós; à nossa volta, muitos outros barcos estrangeiros, a maioria, franceses.
Os estrangeiros embarcados se vestem, sem receio, de uma forma totalmente diferente dos locais. Acho que não observam os hábitos, e as diferenças de clima; dá até medo de andar ao lado deles na rua, parece que, na testa, já trazem escrito: assaltem-me, por favor! Encontramos, perto do Mercado Modelo, o capitão de uma embarcação estrangeira que conhecemos em Paraty. Estava chovendo, naquele dia, e ele usava uma sombrinha cor-de-rosa, “pink”, além de colete cheio de bolsos, rabo-de-cavalo, e os próprios olhos azuis, mas esses, não tem jeito de esconder.
A minha mãe diz que se disfarçar de morador local é perda de tempo; me aconselha a relaxar, e tomar uma água de coco. Acho que tem limite, mas ela tem certa razão: no Pelourinho, tivemos muito assédio de vendedores e pedintes, logo na saída do Elevador Lacerda, muitos tentando se comunicar em inglês comigo; a solução foi o Dorival dizer: “Sou daqui, ela está comigo”. Deu certo, eles se dispersaram.
Esse assédio todo só aconteceu nos pontos turísticos; foi tranqüilo andar pelo centro da cidade, que concentra a sede de bancos e prédios públicos, assim como no supermercado e no shopping. E, aos poucos, eles vão se acostumando com a nossa presença, como no Mercado Modelo, onde alguns vendedores já nos cumprimentam, e mesmo no Pelourinho.
E se há uma roupa que a baiana gosta é o “jeans”, de preferência a bermuda, que deixa mais à vontade, acompanhado de blusa verde, em vários tons claros; já cheguei a contar 5 vestidas assim, num grupo de 10, é muito!
Fomos ao Shopping Iguatemi, que é enorme. Achei interessante o fato haver uma capela, lá dentro, que indica a quantidade de igrejas, por aqui, e a religiosidade do povo. Além disso, têm um andar, o último, só com marcas de grife, de roupas e sapatos; as pessoas dos pisos inferiores não frequentam este andar, muito menos nós, que descemos rapidinho. Indício de um sistema de casta, ainda que informal. No cafezinho, tem doces e salgados típicos; o meu preferido é o lelé, que leva coco e milho, e não é muito doce.
Chegamos no mês de São João, que por aqui é levado a sério, uma festa familiar muito aguardada. Parece até fim de ano, com confraternizações nas empresas, caixinha tipo “boas-festas” no restaurante, etc.. Vimos uma confraternização de contabilistas, numa praça do centro comercial, com comida típica e música ao vivo. E muitas outras festas, principalmente, no espaço do Pelourinho, com shows ao vivo e barracas de comida.
Algumas pessoas, do nosso convívio, me perguntaram: E o São João? Como a dizer, o que você vai fazer de bom? E eu não sabia o que responder, porque não era do meu costume comemorar, assim; acabei falando o que eles acham o mais triste: “Vou passar em Salvador, mesmo”. E muitos desejavam: “Um “éxcelente" São João, para você”, que é pronunciado com a tônica no “ex”.
Tiro o chapéu para os baianos: notei que, mesmo pessoas mais simples, usam os plurais, observam as concordâncias dos verbos, em frases pausadas. E colocam muito carinho nas palavras: o “painho”, usado aqui, é uma graça; deve ser a glória para o pai, que ouve. Além disso, eles gostam de conversar, e têm o dom da argumentação: fazem ponderações, tiram conclusões. Só disse, na barraca do acarajé, que preferia o abará. E começou a polêmica: “Eu nunca me fiz essa pergunta…”, disse uma moça, e por aí foi….
Fico imaginando que isso pode ser herança dos portugueses, que chegavam por aqui, discutindo a melhor rota, os lugares para se abrir os olhos, a bitola dos cabos, os ventos, etc…, naquelas conversas longas, e cheias de ponderações, a que se atém os velejadores, até hoje, durante horas, que não se vêem passar.
As pessoas aqui são tranquilas, falam baixo nas ruas, supermercados, shopping, e as crianças não fazem escândalo.
Sou alérgica a frutos do mar. Nos restaurantes self-service, muitos pratos são de comidas típicas com camarão, então, não posso pegar nada que está ao lado, naquela “neura” de um talher ter sido trocado por outro; aí, vou ficando com as últimas opções, a mais frequente, frango de cardíaco, aquele bem branquinho, cor e sabor de isopor.
Dias desse, eu provei um pedaço de abará, que uma moça na barraca disse não ter camarão, mas depois, a baiana que cozinha disse que o põe, na receita dela. E não aconteceu nada comigo. Estou pensando na possibilidade de comer um abará completo para testar. Depois eu conto no que deu.
Como dizem por aqui: um feliz dia, para vocês!
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Versão do Dorival
“Os saveiros, de velas coloridas, cortam a baía de Todos os Santos, vêm de Mar Grande, de Maragogipe, de Cachoeira e São Félix. No cais Cairu, em frente ao Mercado, eles descansam. Ali arriam as velas, ficam balouçando tranqüilamente sobre as águas”. Bahia de Todos os Santos – guia de ruas e mistérios – Jorge Amado – 1945.
Sessenta e quatro anos depois, no píer do Terminal Náutico da Bahia, com as velas arriadas, o Luthier está balançando tranquilamente sobre as águas. Está atracado de popa, preso por dois cabos, boreste e bombordo, em pneus que estão fixados a cunhos do flutuante. Os pneus ajudam muito, aliviando o esforço, nos cunhos e passa-cabos, que é provocado pelo rebojo. Rebojo é um movimento de vai e vem imposto ao barco pela energia das ondas que, apesar de contidas nas proteções do Forte e do porto, ainda passa muito forte, especialmente, na maré alta. O TENAB fica em frente à Praça Visconde de Cayrú, onde está o cais citado por Jorge Amado.
Dia 23 de Junho, véspera de São João, acordei, como todos os dias, com a sequência de apitos vindos da Capitania dos Portos, anunciando a alvorada. Esses apitos, com diferentes ritmos e timbres, soam o dia inteiro anunciando as atividades e a presença de oficiais no Distrito Naval. Gostem ou não, é uma tradição que compõe o cenário do cais.
À tarde, estava apoiado no gradil do cais, olhando para o nada, quando se apresentou um dos funcionários do TENAB, declarou seu nome, perguntou de que veleiro eu era e, em seguida, passou 20 minutos me explicando porque, esse ano, ele não iria ao interior para comemorar São João; estava chateado, precisava dividir isso com alguém. São João, na Bahia, é um dia de festa, talvez tão importante quanto o Natal.
Ao lado do TENAB, tem um pequeno cais onde operam diversos barcos de transporte de pessoas para: Itaparica, Maragogipe, Morro de São Paulo, etc.. Os mais modernos, Catamarãs, transportam turistas, em sua maioria, para destinos mais distantes; e barcos mais simples, de madeira, pessoal local e cargas leves para Itaparica. O movimento foi intenso porque muitos soteropolitanos viajam para passar o São João no interior. Dependendo do destino, há uma economia de 200 km tomando o ônibus em Itaparica, evitando dar a volta na Baia de Todos os Santos, por terra.
Numa tarde de sexta-feira, vi sete saveiros chegarem, com suas velas coloridas. Não traziam farinha e frutas pois somente iriam participar de um filme, por isso tantos. Enquanto as cenas eram rodadas a bordo de um deles, os outros, com os panos em cima, faziam fundo, que, junto com barracas imitando uma feira livre, compunham o cenário.
No TENAB, veleiros estrangeiros são maioria, com seus capitães sempre reclamando da burocracia brasileira, como se nos EUA, ou na França, fosse diferente. Um Sul Africano me disse que aqui é ruim, mas no Caribe é muito pior. Há também barcos de pesca, lanchas da Capitania, dos práticos do porto, escunas e muitas canoas a remo. Todos os barcos ficam em poitas, ou atracados lado a lado, bem próximos a uma rampa, localizada ao lado da Capitania.
O entorno do Cais é lindo. O espaço total não é maior que meia milha quadrada, mas tudo funciona bem, barcos entram e saem a todo tempo, manobram com uma facilidade e precisão que dá inveja. Os primeiros motores são ligados meia hora antes dos apitos da alvorada, e os últimos barcos se aquietam às 21:00 horas.
Nos diferentes espaços à volta do TENAB, convivem: velejadores, turistas, comerciantes, pescadores, trabalhadores e miseráveis que, dormindo ao relento, em parte, nada mais são que fruto do descaso de uns poucos eleitos.
Gosto daqui, dessa ordem sem controle, da tradição e da harmonia, do sorriso e da agonia, da luz e do olhar de um povo que brinca e festeja a vida, por qualquer motivo.
Se puder, venha conhecer e viver um Cais muito diferente de qualquer marina. Aqui, no meio de veleiros de fora, onde mais se fala inglês, há um certo mistério no fim da tarde, onde se vê um baiano falando ao celular em um cais velho, tendo por fundo um antigo forte, um moderno catamarã, barcos mais antigos, uma réplica de caravela, navios e um daqueles saveiros velejando graciosamente em direção ao cais, para ficar “balouçando” tranquilamente.
Está muito bem pensada esta viagem contada a duas mãos. Dois estilos diferentes, duas formas de ver distintas.
Eu que já fui algumas vezes ao Brasil, quase sempre ao Nordeste tenho tendencia para pensar que o Brasil é todo igual, o mesmo clima , a mesma gente, a mesma musica. Mas não é assim pois não!. Voçês chegam a um lugar e sentem um cheiro diferente, uma musica diferente. Tomara que eu apanhe essa sensibilidade.
Caro Conde,
À vela, devagar se vai longe. Chega-se aos lugares por outra porta. Sem a pressão da data da partida, e do horário do vôo, temos tempo para conhecer lugares e pessoas, além daqueles turísticos e famosos.
Ainda estou aprendendo, mas, quando chego em algum lugar olho, escuto e cheiro tudo, sem expectativas, e a realidade me surpreende.
Grande abraço
Dorival
Oi Conde.
O Brasil é muito grande, você sabe, então, as diferenças regionais, de tipo físico, dos costumes, da alimentação, das frutas, de luminosidade, de clima, são tantas, que logo são notadas, principalmente, por dois à toas, como nós. Sorte a sua se puder vir, uma vez mais, e constatar.
Obrigada por nos acompanhar.
Catarina
Olá Dorival e Catarina, que bom ter notícias de vcs!!
Faz um bom tempo que a gente não se vê, alias a última vc ainda estava acabando o barco . . .
Par aqui as coisas estão mais ou menos no ritimo de um veleiro . . .devagar . . . não consigo arrumar tempo pra trabalhar no meu SM-28 (só umas 8 a 12h/ semana).
Ritimo bom mesmo está minha filhinha de 7 meses . . . sapeca que só
Aproveitem bem a viagem . . .saudades de vcs
um grande abraço
Oi Nobrega, bem-vindo a bordo. Gostamos de saber de você e da sua filha. A construção é assim mesmo, demorada. O bom é que duas semanas depois que o barco está na água, você esquece totalmente como foi a construção. Estamos nos divertindo bastante. Acompanhe nossa viagem. Vamos participar da Refeno deste ano. Lembra quando te disse que queria fazer isso?
Abraço
Dorival
Olá Dorival e Catarina,
Seus relatos trazem saudades de Salvador, um de nossos portos preferidos.
Não sei se é por causa da magia do lugar ou se é a prática, mas seus textos estão ficando cada vez mais interessantes e literários.
Assim vai dar para escrever um livro ao final da viagem. Mas, o que estamos dizendo ??? Que final ??? Esperamos que sua viagem seja cada vez melhor e sem final.
Um abraço,
Ivan mais Egle
Oi Ivan e Egle
Agradecemos os elogios. Salvador é mágica mesmo, desde o mar até suas ladeiras sujas, que são lavadas somente para o Governador passar. E daí, o que vale mesmo é a festa.
Abraço
Dorival e Catarina
A bordo do Luthier, em breve em Itaparica.
Logo estarei por estes lugares em meu veleiro qie pretendo morar, 2010, sera o ano de decisao, me aguarde companheiros que podemos nos encontrar em breve. abraços
Sonia, bem-vinda a bordo do Luthier.
Por incrível que pareça, a decisão de morar a bordo é fácil, mas dá muito trabalho. Duas coisas são necesárias: marcar a data, e planejar muito bem todas as etapas, para poder soltar amarras.
Boa sorte, aguardamos você.
Abraço
Dorival e Catarina