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Versão da Catarina
Há sonhos tenebrosos, e com cachorro atropelado é um deles. Isso porque, o cachorro atropelado dificilmente tem escapatória: logo em seguida vai passar um outro carro, para completar a tragédia, e é difícil que alguém se arrisque, no meio do trânsito, para tentar salvar o que sobrou. Pois durante a viagem de Suape para Salvador tive um sonho desses, desgraçado.
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Não que o mar estivesse ruim, não estava, mas na segunda noite de viagem adotamos um rumo que fez com que as ondas, de cerca de 2 metros, pegassem o barco de lado, e foi mais difícil dormir com os solavancos. Acho que o corpo reclamou, como pôde. O Dorival ficou com dor de cabeça.
Algumas coisas incomodam em viagem mais longa, uma delas é o colete de segurança, minha “coleira”, com aquela placa nas costas, impedindo uma acomodação melhor no cockpit, durante o tempo de vigília. Aliado ao maior balanço do mar, e à necessidade de se segurar para não cair, principalmente, para preparar os alimentos, todo esse desconforto acaba causando dor nas costas, e pesadelo. Diferente do que parece, a viagem que fizemos foi muito boa, com vento constante, de alheta, grande parte do tempo, sem nenhum incidente, e ninguém enjoado a bordo. O desconforto faz parte, nada que não valha a pena, para se chegar a algum lugar.
Pontos altos da viagem foram a companhia de golfinhos, depois de Maceió, e o banho. O banho, para mim, é a hora boa da viagem, do jeito que for, lá fora mesmo, balançando, com vento. O moral fica elevado, e o ambiente, perfumado. Esse hábito faz parte da cultura do brasileiro (da maioria) que, dizem, vem do costume indígena, de se banhar várias vezes ao dia, em rios e cachoeiras.
A aproximação da Baía de Todos os Santos, pela Ponta Itapuãzinho, também foi especial, mesmo que o fraco vento de popa, que fez com que ficássemos em asa de pombo, por várias horas, jogando conversa fora, dando banho em isca de pesca, fazendo planos. Fazemos de tudo para não ligar o motor, principalmente, com o vento de popa; é certo que o Dorival, nessa condição, vai enjoar.
O que se pensa nas horas de aproximação são conclusões sobre o que deu certo na viagem, e o que pode ser melhorado, mas, principalmente, num prato de comida normal, de preferência, com um bom bife, acompanhado de arroz, feijão, farinha e salada. Isso ficou para o dia seguinte, porque chegamos à noite, exaustos, e comemos uma lasanha, montada na hora.
No Tenab, encontramos uns poucos barcos, que se engajaram na Mini-Transat. O píer está mais vazio, muito provavelmente, por conta do aumento do preço da diária. Todo mundo se mandou para Itaparica, para ficar na âncora, é o que nós também vamos fazer. Eles não estão muito preocupados, logo vão receber uma outra regata.
A temperatura ambiente está bem mais agradável que mais a nordeste do país, não passa dos 30ºC, e sempre venta. A da água, não passa dos 27º C. Dá para esperar um pouco mais o ar-condicionado.
O resultado de uma temporada grande de viagem, em que o barco se esforça, são pequenos consertos e manutenções, para todo lado: vazamento na mangueira do tanque de água, no Sikaflex dos fuzis, limpeza do barro dos tanques, etc… O barco fica desmontado para reparos, com ferramentas espalhadas, e eu contribuo com o Dorival, no começo, passando as ferramentas, depois, perguntando quando vai terminar o serviço e, por último, indagando quando ele vai guardar todas aquelas coisas espalhadas. Tento me controlar, mas algumas reações são irracionais, e a aparente “bagunça”, depois de umas tantas horas, vai me tirando do sério.
Estamos arrumando o barco para receber familiares, o que significa, entre outras coisas, desocupar a chamada “sala de jogos” do barco, na proa, tirar de lá tudo o que jogamos, e o mais difícil, arrumar um lugar para elas: violão, coletes salva vidas, ventilador, roupa suja, etc… Enchemos o barco de guloseimas, para deixar todas as crianças felizes.
Estou em casa, gosto da harmonia das cores deste lugar. Só fico pensando que vou sofrer quando tiver que ir embora. Vai ser uma novela mexicana. Melhor não pensar nisso, e aproveitar. Bons dias futuros para nós.
Versão do Dorival
Saímos de Suape na segunda feira, dia 9 de novembro, às 9:15 hs. Levantamos âncora e, passando pelo lado certo da bóia que marca as pedras enfrente ao Ressort, seguindo os mesmos waypoints que usamos para entrar. Sem problemas.
A previsão era de mar de 1,5 metros e vento de 10 a 12 nós E, no primeiro dia, depois teríamos ventos e ondas de ENE. Assim que saímos do molhe do porto, passamos pelas ondas desencontradas que acontecem por efeito das múltiplas reflexões com o Cabo de Santo Agostinho. Logo esse efeito desapareceu e o mar se fez calmo, como previsto.
Tomamos um rumo sul verdadeiro que foi nos afastando da costa, devagarzinho, de tal forma que, ao cair da primeira noite, já estávamos em profundidades maiores de 200 metros. Às 18:00 hs, mudei o rumo para seguir paralelo à costa. Navegamos, aproximadamente, a 18 milhas da costa. Mais uma vez, essa rota se mostrou muito boa, ficamos fora das redes e barcos de pesca, estes sempre mais próximos do continente, e longe da rota dos navios.
A segunda noite foi um pouco mais chata, porque as ondas vindas de leste balançavam o barco, que estava velejando com vento de ENE, alheta. Ao amanhecer do dia 11, o vento e as ondas rondaram para NE. Com a mudança de rumo, para aproximar lentamente de Salvador, ficamos em popa rasa. Montei o velame em asa de pombo usando o pau do balão, e assim fomos, durante 8 horas, estáveis, até perto de Salvador. Chegamos no Tenab às 18:30 hs.
A previsão se confirmou durante toda a viagem, velejamos desde a saída do porto até que o vento baixou para 5 nós próximo à Ponta Itapuãzinho, bem perto de Salvador. Chegamos no Tenab com ajuda de motor. Fizemos 370 milhas em 57 horas e 15 minutos, média de 6,4 nós.
O relato acima parece com muitos outros que já fiz desde que saímos de Ilha Grande, mas a viagem foi marcante e diferente. Foi uma velejada tão tranquila que, quando deixava o meu turno, não levava mais que 5 minutos para dormir, e não enjoei.
Acho que a grande diferença é que, embora pequeno, fizemos um circulo, saímos de Salvador e para cá voltamos, só que está tudo diferente. Os amigos que fiz no Tenab aqui não mais estão: os estrangeiros já estão no Caribe, os brasileiros que vieram para a Refeno já voltaram para o Sul, e está tudo vazio porque, com a chegada da Mini-Transat, o Tenab foi esvaziado para recebê-los e, dizem, o povo ainda não voltou. Não sei não, porque eles subiram o preço de R$ 0,60 por pé, por dia, para R$ 1,00. O rebojo também não é o mesmo, só aparece na maré cheia e é bem leve.
Fora os poucos remanescentes da Mini-Transat, há um catamarã, 41 pés, com um casal de franceses (claro) que ontem saíram para Mangue Seco (um pouco ao norte de Salvador) na companhia de um casal de brasileiros, que os ajudaria a entrar. Quando nos falamos, comentei que o vento seria NE, mas ele contava com uma informação de que um vento local E surgiria à tarde. Saíram cedo.
Hoje de manhã, vi o catamarã de volta e fui saber o que ocorreu. Eles disseram que o vento continuou NE, que fizeram 8 milhas em 8 horas e, então, desistiram e voltaram. Impressionante a determinação deles, preferem brigar contra o vento, e até voltar, mas não vão no motor de jeito nenhum. Acho que eu preferiria não perder o passeio mesmo que custasse um pouco de diesel.
Salvador é a mesma, as pessoas sorriem, as crianças não ficam chorando e batendo os pés pedindo coisas, os adultos raramente brigam ou agridem as crianças, e os velhos são respeitados. Claro que existem exceções para o que acabo de escrever, assim como, nem todas as mulheres estão vestidas de verde, mais muitas estão.
O cais Cairú também está do mesmo jeito, as escunas vão e voltam, os pesqueiros continuam se ajeitando entre as lanchas dos práticos do porto e os barcos que fazem transporte da tripulação de navios fundeados no meio da baia.
Há um píer novo, flutuante, na Capitania dos Portos. Os apitos ainda soam anunciando as fainas e o alvorecer. Carros com som potente continuam, no meio das madrugadas de sexta e sábado, tocando alto musicas de gosto duvidoso, no posto de gasolina. Prostitutas rondam o Mercado Modelo à noite.
O Luthier tem três tanques d’água, dois debaixo dos sofás da dinete e um debaixo da cama de popa. A alimentação do tanque de bombordo, da dinete, é feita por uma conexão com o tanque de popa. Depois desse passeio até Fernando de Noronha, iniciou-se um pequeno vazamento na flange, onde está uma válvula para controle do transbordo do tanque de popa para o da dinete. Gosto de arrumar logo esses pequenos problemas, antes que eles cresçam.
Simples, basta esvaziar o tanque, tirar todos os sapatos do paiol onde está a flange com vazamento, abrir a caixa de ferramentas sobre o sofá da dinete, desmontar a flange, limpar todos os resíduos de vedante etc. etc., montar, etc.. A bagunça é inevitável, e quem já usou Sikaflex sabe a meleca que é. Mesmo que você não suje nada, nem o “shortinho”, ponha tudo de volta no lugar, que o reparo fique perfeito, não há mulher a bordo que não estresse com isso. A Catarina não é exceção.
Mas o que tem que ser feito tem que ser feito. O duro é você comprar, em uma famosa loja náutica, uma peça para fazer manutenção, aumentar o conforto a bordo, ou até mesmo uma inutilidade sonhada, e o vendedor garantir que entrega em uma data, e não o faz. Paguei um extra para que a mercadoria viesse pelos Correios. Pedi o número do conhecimento e o informado não é um número de rastreamento de SEDEX, não tem 13 caracteres.
Durante a construção do Luthier isso aconteceu muitas vezes, mas eu não me acostumo e não aceito mais isso. Se a mercadoria não chegar amanhã, vou virar executivo paulista e deixar de ser cruzeirista paciente. Depois eu conto como foi essa.
Gosto de Salvador. Aqui eu me sinto em casa.
Salvador parece ser mesmo uma unanimidade entre ois velejadores. é o segundo lar de todos nós.
Gostei dos testemunhos sobre o estresse feminino com manutenções a bordo. Eu achava que isso só acontecia comigo…
Aproveitem bem a escala soteropolitana.
Abraços,
Ivan
Oi Ivan,
Essa história de estresse feminino com manutenções é muito comum, lembro de vários casais estrangeiros com esse tipo de acontecimento a bordo. Fazer o que? Fora isso, elas são a alegria do barco.
Abraço
Dorival
Apenas uma curiosidade….asa de pombo como vocês dizem, é por aqui navegar em borboleta.
Fiz contas e por aqui, as marinas mais famosas como: Cascais: oeiras e até em Lisboa, assim como no Algarve, em VilaMoura por exemplo os preços serão mais o menos o dobro, ou seja 2 reais por pè, principalmente no periodo forte de Junho A setembro. Mas existem alguns sitios espetaculares onde nada se paga, eu conheço alguns, devem existir mais; Ilha da culatra (Algarve) baleeira (Algarve, ponta de Sagres) Portimão ( foz do rio Arade) e todo o Guadiana Quase até Mertola. Perto de Lisboa e perto de mim os preços são bastante baixos, foi onde ficou a familia do veleiro Bravo e adoraram, mesmo sem muitas condições, Mais acima um pouco no rio tejo, não se paga nada.
Destes todos…….a culatra é o rei e a rainha.
Caro Conde,
Realmente, “borboleta” parece mais adequado que asa de pombo.
Dá água na boca as alternativas de ancoragens que você citou.
Continuamos pensando em ir até Portugal.
Abraço
Dorival e Catarina