Pé na estrada
Casa de campo

Dobar dan
Regatas

Grécia um país azul
Itália: Mar Adriático
Grécia mar Iônico
Ao mar, novamente com leme
Sem leme e sem documento
Bem vindos ao Aquarela

Amigos de terra, mar e ar

 

 

 

 

 

 

SEM LEME, SEM DOCUMENTO

 

Cenab e Forte São Marcelo, vistos do Elevador Lacerda - Salvador/BA

Carnaval de 2003  -  Baía de Todos os Santos

 

    Muitas pessoas, a uma certa altura da vida, resolvem largar tudo e mudar de rumo o destino. Acredito ainda que, por uma fração de segundo, essa idéia habitou os sonhos de muita gente. Comigo não foi diferente: "surtei aos trinta e cinco anos" e larguei toda a segurança, conforto e estabilidade de uma boa vida em terra e fui morar num veleiro pequeno (6,60m), sem motor, nem banheiro mas, com vista permanente para o mar.
    Assim parti para uma história que seria escrita a cada dia, um novo aprendizado e é lógico que em toda escolha é preciso que se renuncie outros conceitos e pré-conceitos, além da própria referência familiar, o apoio e companheirismo das pessoas que amamos e que nos amam. 
   Não sei se foi só o meio que escolhi para viver, mas sempre tive a solidariedade do povo do mar, e uma amizade sem igual, que faz as vezes da família distante em muitas ocasiões de aperto e felicidade. Agora depois de mais de 4 anos morando no pequeno Aquarela, vivendo e me emocionando a cada pôr do sol, posso dizer que será difícil desembarcar um dia. Estou aprendendo a trabalhar nesse meio (ainda muito masculino), conviver com o desconhecido, a instabilidade financeira e de condições climáticas: hoje estou mais sensível para perceber as sutis variações de temperatura, correntes, pressão atmosférica, umidade, ventos, nuvens, detalhes da natureza que quando vivia em terra passavam despercebidos.
Me propus um desafio, de velejar no pequeno veleiro Aquarela de Salvador/BA até Angra dos Reis/RJ, sozinha. Depois de semanas de trabalhos, forçados, o Aquarela ficou "pronto", e eu também, já era hora de partir, para realizar um sonho, desses que movem o nosso mundo. Minha saída foi ansiosa, me sentia insegura de soltar as amarras. Quando a maré começou a vazar, subi as velas, o vento fraco era de leste, e meu coração estava apertado; soltei a poita e fui de empopada a uns 5 nós; senti uma alegria singular ao passar pela bóia do canal da Ribeira e pude ver o mar todo pra mim, sem ondas, era um mar de almirante, como presente de Netuno. Sem muitas despedidas, para não cair no choro, sai na quarta, 26/02/03 às 13h30, rumo Abrolhos, com um vento leste, de 10 a 12 nós.      Regulei o leme de vento e fui arrumar algo para beliscar, haviam muitos navios no horizonte, já estava a vontade com a nova  realidade.
   Ao alcançar o Farol da Barra já me sentia super satisfeita comigo e com o Aquarela. Só ai resolvi me despedir dos amigos mais íntimos via celular. Passei pela barra da Baia de Todos os Santos com uma saudade adiantada e uma ansiedade pelo que estava por se realizar. Depois do primeiro pôr do sol magnífico já me sentia super excitada com a viagem. Tive dias e noites maravilhosos no mar, um céu repleto de estrelas e vento sempre a favor. Algumas manobras com o leme de vento, uns ajustes finos, me tomaram muito tempo, fazia apenas anotações sobre a navegação. No fim da segunda tarde eu e o leme de vento entramos em harmonia, agora ele precisava de poucas regulagens ao dia, e daí por diante trabalhou como gente grande por toda a viagem. Não fiquei cansada como imaginava, dormia sempre que podia, o regime de pôr o despertador a cada 20 minutos, funcionou bem. Até consegui sonhar. 
   Após 24h de navegação, primeiro problema técnico, luz de alcançado apagou, na manhã seguinte, 2 horas de trabalho dentro do "confortável e espaçoso" paiol de popa  e a luz voltou a funcionar.
   Noite sem lua no horizonte encontrei dois navios, mas foi em vão a tentativa de contato via VHF; nas primeiras 48h não consegui manter contato com nenhum navio, para repassar minha posição para o ICES, em Vitória, assim fiquei sem dar notícias. Como estava tudo bem a bordo, não me preocupei muito e com o mar tranqüilo pude ter uma rotina a bordo muito prazerosa, as refeições eram um  luxo e pude até fazer pão. Calor a bordo foi uma constância, somente um banho frio para refrescar. Na sexta, de manhã, tive uma grande surpresa ao ouvir no VHF, o veleiro Anaída, chamando o veleiro Maracatu; eu estava no través de Canavieiras, como eu só podia ouvir, mas não tinha alcance para transmitir, fiz a festa sozinha mesmo, pois ouvir vozes conhecidas depois de tanto tempo sem conversar, foi ótimo. No mesmo dia, 28/02/03, a noite, João Carlos do veleiro Yahgan, conseguiu me contactar via VHF, ele estava ancorado em Santo André, e assim conversamos por horas e  passei informações sobre a viagem, o Aquarela, e avisar a família e os amigos por onde eu andava. O João Carlos me avisou que sairia de Santo André no domingo de manhã, rumo à Vitória.
Domingo de carnaval, a noite estava maravilhosa, chuva de meteoritos, vento enfraquecendo. Farol de Abrolhos "boiou" há umas 30M; na madrugada do dia 02/03/03, estava sem vento e muito sono, precisei de coca-cola quente e cantoria para me manter acordada nesse turno maior que o esperado. Passei por Abrolhos, uma calmaria quase absoluta, o que nos movia era a correnteza de 1,5 a 2 nós. Registrei minha passagem pela ilha de Santa Bárbara, às 5h da manhã e segui rumo a Vitória. Clareou e não tive mais sono, estava em êxtase, realizando um  sonho, a felicidade a bordo era reinante. Calmaria o dia todo, haja ventilador, só às 13h começou algum vento, a vida a bordo estava organizada, agora era só aguardar a chegada em Vitória. Foram horas sem vento, mar liso, um "suadeiro" diferente (como se diz em Salvador), só depois do almoço entrou o vento de uns 8 a 10 nós.
Segunda-feira, recebi do João do veleiro Yahgan, via rádio, por volta das 14h, um aviso de ventos fortes, de 25 a 30 nós e ondas altas, haviam muitas nuvens de chuva se formando a leste e nordeste.
   Diminui os panos, preparei o abrigo, regulei o leme de vento e aguardei, em algumas horas lá estava ele, forte e com ondas grandes para o nosso pequenino tamanho, uns 2m talvez (nessa hora é difícil certas medidas). Tirei o leme de vento e fiquei no comando e, de repente o tripulante,  LEME, se amotinou e desembarcou, literalmente afundou e sumiu para sempre.
Dia 03/03/03 ás 03h33 pm, sem leme sem rumo, a deriva, depois de tentativas vãs de manter o rumo só com as velas, plotei minha posição, estava a quase 70 milhas ao norte de Vitória. Comuniquei a avaria ao João do Yahgan, que estava há umas 3 horas atrás, combinamos que ele me rebocaria até Barra do Riacho, joguei âncora: Lat. 18o 56'S /  Long.039o 08'W. 
   Enquanto aguardava, verifiquei a situação a bordo, tudo certo na medida do possível, sem danos e principalmente  o Aquarela não estava fazendo água. Neste momento tive uma experiência inusitada e muito engraçada, garanto que foi assim mesmo: pescadores se aproximaram numa traineira com o dobro do comprimento do Aquarela  com umas 8 pessoas a bordo, para oferecerem auxílio.
   Diálogo: D.Maria, o que houve? / - Estou sem leme, e não tenho motor.
A dona tá vindo de onde? /- Salvador
Pra onde vai? / - Vitória
D.Maria, quem está com você? / - Só eu e Deus.
A senhora é da onde? / - De Minas uai!
O que você esta fazendo aqui? Isso é que é aventura!?!?!? Vamos te rebocar para mais raso./ - Obrigada, já tenho reboque vindo ao meu encontro, e estou bem ancorada e sem mais avarias.
   Deram mais umas duas voltas em torno do Aquarela e sentenciaram:
    Maria, você é mesmo maluca, se precisar, o barco que esta próximo pode vir te buscar no fim do dia. Boa sorte, Maria Maluca!! Isso que é coragem, vocês estão vendo!!
   No princípio da noite o Yahgan chegou onde estava ancorada. Com alguma dificuldade por causa das ondas e o vento ainda com uns 20 nós, fizemos a operação de amarração para o reboque precisei usar uma boa âncora de mar (cone) para diminuir o curso, sem leme  é muito complicado manter o barco estável, partimos para Barra do Riacho, à 30 milhas, a 2 nós de velocidade, chegamos ao amanhecer depois de quase 10 horas de reboque. Ficamos três dias ancorados, fazendo alguns reparos no Aquarela e nos preparando para seguir viagem juntos. Depois de algumas tentativas frustradas de seguir sem leme e só com o motor de popa (emprestado), resolvemos rebocar o Aquarela as 30 milhas que faltavam para Vitória, utilizando novamente a âncora de mar. Chegamos em Vitória oito horas depois, fizemos uma parada obrigatória (e demorada) para fazer um leme novo e mandar notícias. Nenhuma palavra terá o verdadeiro significado da solidariedade e ajuda que recebi do João Carlos e do Yahgan.
  Até a próxima.
Christina

 

 

 

 

 

 

 

 


Chris no Angra dos Veleiros, Ribeira, São Salvador/BA, em fevereiro de 2003.

 

 

Aquarela visto de cima do mastro depois da pintura de convés, janeiro de 2003.

 

 

Por do sol em Itaparica, verão de 2003.

 

 

Goio, baia de Camamu/Bahia

 

 

Aquarela depois da pintura e bons tratos, Marina de Itaparica/BA, no verão de 2003.

 

 

Aquarela e Yahgan, na Barra do Riacho/ES